OPINIÃO

Samba na medicina

Já aqui, como tudo acaba em samba, podemos seguir dançando no embalo ou prestar atenção à letra

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SÉRGIO GONDIM

Publicado em 22/12/2023 às 3:07
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"Quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela, gravada com o nome dela. Não quero flores nem coroa com espinho, só quero choro de flauta com violão e cavaquinho."

Nada mal, coisa de sambista genial, mas a maioria não quer morrer, com ou sem festa, e para isso há muito o que fazer desde o pré-natal, passando pelo parto, nutrição, vacinas, educação, higiene, esportes, emprego, habitação, amizades e paz. Claro que médicos são importantes, seja tratando uma pneumonia, desobstruindo uma artéria, trocando a medula que subverteu a linha de produção, corrigindo os efeitos de uma mutação antes fatal, retirando o pequeno nódulo que estava a caminho de se tornar um tumor ou corrigindo a doença que traiçoeiramente se aproveita da doçura para encurtar a vida. São muitas intervenções salvadoras, precisas, aumentando a média de vida, com qualidade, ao redor do mundo.

Tudo muito bom, mas é preciso ter cuidado para não haver empolgação demais, extrapolando com práticas que remetam ao tempo dos curandeiros.

Os procedimentos médicos são classificados de acordo com o que oferecem. As recomendações de grau A têm alto nível de certeza de benefício substancial. As de grau B, moderado. As de grau C envolvem dúvidas sobre um pequeno benefício. As de nível D são as que com certeza não beneficiam ou os danos superam os benefícios. Existem ainda as recomendações classificadas como de grau I, indicando que o balanço não pode ser determinado por falta de dados de qualidade ou por evidências conflitantes. Assim, as recomendações de graus A e B devem ser oferecidas a todos, as de grau C para casos individuais sob análise
do profissional e preferência do paciente. As de grau D não devem ser indicadas para ninguém. As de grau I, se oferecidas, o paciente deve entender as incertezas sobre os riscos e benefícios.

O objetivo de tal classificação atende ao fundamento: "antes de tudo, não fazer mal". Existe um conceito equivocado de que, em checkups, devemos fazer "todos os exames". É compreensível que pacientes pensem assim, mas o médico delimita as reais indicações, esclarecendo que exames dissociados da necessidade clínica e epidemiológica são perigosos na medida em que causam ansiedade, dúvidas, tratamentos desnecessários, procedimentos que envolvem irradiação, riscos e traumas, para finalmente diagnosticar ou tratar condições insignificantes para a vida dos pacientes. Muitos desses exames e os procedimentos decorrentes deles estão classificados como de grau D, portanto não indicados para ninguém.

Sem analisar o evidente impacto financeiro do “todos os exames” muito menos os rumores de que pudessem ser motivados por lucros e comissões ou mesmo por fé inabalável na sua eficácia, a discussão é sobre o que é apropriado à luz dos dados disponíveis na literatura médica, não na ciência bem-falante das lives e redes sociais.

Existem recomendações baseadas em evidências científicas apontando em que circunstâncias é indicado, por exemplo, solicitar a dosagem de um hormônio. O envelhecimento normal, seguindo no exemplo, não é motivo para verificar se existe deficiência de hormônio do crescimento e os riscos da administração desse hormônio como antienvelhecimento superam os benefícios. O uso off-label com tal indicação é ilegal nos Estados Unidos.

Já aqui, como tudo acaba em samba, podemos seguir dançando no embalo ou prestar atenção à letra: “Tá legal. Mas não altere o samba tanto assim. Olha que a rapaziada está sentindo falta de um cavaco, um pandeiro e um tamborim”.

Sérgio Gondim, médico

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