OPINIÃO

Façamos por merecer

Ou a sociedade brasileira foge dos "velhos cachimbos que entortam a boca" e se oxigena a partir de novas lideranças políticas e projetos, ou o país mergulhará ainda mais fundo no abismo

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OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS

Publicado em 23/12/2023 às 0:09
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Entre idas e vindas, eu e minha família vivemos em Brasília há dezoito anos. Adaptamo-nos bem à jovem cidade. Quando cheguei pela primeira vez, me chamou atenção a urbanidade da população - os carros paravam nas faixas de pedestres -, a eficácia da segurança pública - em todo lugar havia um agente fardado -, e a gestão governamental – locais públicos sempre limpos e organizados.


Com o passar dos anos, essas virtudes foram pouco a pouco sendo relativizadas ou até esquecidas. A semana passada, quando dirigia para trabalho, ao sair de uma tesourinha, um carrão preto com placa diferente me deu uma fechada que me jogou para o acostamento. Respirei e fui em frente.


Não era um bom dia! Logo a seguir, escutei uma buzina insistente (aqui em Brasília não se buzinava) e mais adiante um carro me ultrapassa em alta velocidade com o motorista gesticulando aquele gesto. Eu estava na faixa e na velocidade da via.


Quarta-feira (20.12.23), perplexos, assistimos a um espetáculo deprimente na Câmara dos Deputados. Uma excelência, um nobre parlamentar, desferiu um vibrante e sonoro tapa na cara de outra excelência, outro nobre parlamentar, enquanto filmava a ação com o celular para postar prontamente nas redes sociais o
seu corajoso feito.


Pior, ao ser questionado por jornalistas o agressor afirmou: “Eu nasci na favela, comigo é o seguinte, se bater, apanha.”


A frase por si só já é grotesca dita por qualquer cidadão. É uma apologia ao cisalhamento social. Ela ofende àqueles que vivem nas comunidades. Induz que são contumazes portadores da violência. Não são. Por que estamos mergulhados em tanto antagonismo, raiva gratuita, irascibilidade com tudo, comportamentos antes atribuídos apenas aos descompensados mentalmente?


A empresa Quaest, responsável por levantamentos de opinião, liberou uma pesquisa sobre o pensamento da população brasileira com relação ao ambiente político. As conclusões, lastimosamente, apontam que não há boa luz no fim deste túnel.


Depreende-se da análise que ainda veremos muitas discussões em casa, no trabalho, na igreja, na rua, no trânsito, no palácio do planalto, no congresso, na suprema corte nas quais a opinião das partes seguirá irredutível, mesmo diante de argumentos contrários possíveis de serem verdadeiros.

Dentre os dados compilados, um, em especial, me despertou reflexão. 92% dos eleitores do atual presidente não mudariam seu voto em caso de nova eleição. No time do ex-presidente, 93 % dos eleitores também não.


A manter-se esse perfil, ou a sociedade brasileira foge dos “velhos cachimbos que entortam a boca” e se oxigena a partir de novas lideranças políticas e projetos, ou o país mergulhará ainda mais fundo no abismo dantesco dos conflitos sociais incontornáveis.


Quando todos se acham portadores da razão, ninguém é portador da razão. Poderíamos começar uma caminhada de redenção relembrando o maravilhoso filme dirigido por Steven Spielberg, O RESGATE DO SOLDADO RYAN. Próximo ao final, o capitão Miller (Tom Hanks), líder de um pelotão com a missão de encontrar o soldado Ryan (Matt Damon), já ferido de morte, puxa pela gandola o jovem soldado e lhe diz ofegante: “faça por merecer”. A cena desperta aspectos éticos e morais inquestionáveis.


O esforço de nossos antepassados em nos legar um país reconhecido pela lhaneza de trato de sua população, capacidade de aceitar o contraditório, afastado das disputas religiosas e raciais, e pacífico em sua natureza nos impõe fazermos por merecer. A longa marcha de pais, avós e tantas outras pessoas que lideraram patrulhas em busca de nossos soldados ryans, forjaram valores e conformaram tradições não pode ser esquecida ao costado da estrada sinuosa que percorremos até agora.


A proximidade das comemorações do Natal, momento de reflexão espiritual, e do final de ano, momento de transformação carnal, é bela oportunidade para a sociedade angustiada, raivosa e perdida nas brumas da incompreensão abaixar as armas.


A oração de São Francisco é longa, comovente e adequada para esta conclusão.


“Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz. Onde
houver ódio, que eu leve o amor, onde houver ofensa,
que eu leve o perdão, onde houver discórdia, que eu
leve a união, onde houver dúvida, que eu leve a fé,
onde houver erro, que eu leve a verdade, onde houver
desespero, que eu leve a esperança, onde houver
tristeza, que eu leve a alegria, onde houver trevas,
que eu leve a luz [...].”


Feliz Natal e um Ano Novo repleto de realizações.

Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da Reserva

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