Prosa da inflação brasileira
Em geral, inflação é referida como percentual anual (ou mensal) e, quando desembestada, vem a referência diária; coisa que, além de causar dor de cabeça para ser entendida, fura o bolso e amplia a pobreza
No artigo imediatamente anterior, mencionei a dificuldade de se fazer prosa palatável, que não indisponha o leitor a cumprir a leitura do texto. Ainda mais difícil é dizer algo inteligível a um público amplo, sobre tema tão intragável: inflação (aumento generalizado de preços). De todo modo, seguem alguns dedos de prosa sobre esse indigesto personagem.
Em geral, inflação é referida como percentual anual (ou mensal) e, quando desembestada, vem a referência diária; coisa que, além de causar dor de cabeça para ser entendida, fura o bolso e amplia a pobreza – quando alcança a dezena (ao ano) e, célere, vai bem além. Passagem para a tal “inflação de dois dígitos”. Ou três dígitos [100+], quatro dígitos [1000+] e além, até se tornar hiperinflação, coisa que felizmente o país não conheceu (Alemanha, 1921-23, caso clássico).
Na hiperinflação, a moeda deixa de circular, “desaparece”; encontra-se na Internet a imagem de uma alemã alimentando um forno, com cédulas de marco, para aquecer a família...; era mais barato do que carvão ou outro combustível. Sabe mesmo o que é, só quem viveu. Quem hoje se lembra das moedas derramadas no campus da UFPE, por exemplo, por onde quer que se passasse durante uma caminhada, nos idos de 1989-93? “Pratas” pra todo lado. Descartadas, porque pouco valiam.
O Brasil teve números trágicos. Uma ilustração superlativa é a inflação ‘anualizada’, um dos indicadores divulgados pelo IPEA. Nosso pico mensal cravou 82,39% em março de 1990. Naquele março, tal indicador – levado em conta o regime geométrico, exponencial, de crescimento dos preços – resultava em [(1,8239)12 – 1] x 100 = (1.355,2277 – 1) X 100 = 135.422,8% ao ano. Ocorre que o “choque” do Plano Collor reduziu a inflação para “apenas” 15,5% no mês seguinte e a inflação anual efetivamente observada em 1990 alcançou a “bagatela” de 1.621% (27% ao mês). O pico anual, observado em 1993, foi de 2.477% (mensal de 31%).
Pois bem, o Brasil escapou da real hiperinflação. Tivemos, no máximo, uma superinflação, e o sabor foi muito ruim, mesmo amenizado (para não-pobres) pela correção monetária, que inclusive fazia a proverbial caderneta de poupança arrotar milhões (em cruzado, cruzado novo, cruzeiro real...) – eram muitos os “milionários”.
Agora, estamos chegando aos 30 anos da moeda Real – no próximo 01 de julho de 2024. E, desde então, os momentos de agonia (inflação ANUAL de dois dígitos) foram em 2002 (12,5%), 2015 (10,7%), e 2021 (10,1%). Houve preocupação, mas – considerado nosso secular currículo – foram momentos incidentais com menor chance de gerar desastre. Por outra via, no entanto, a economia resiste a permanecer em patamar abaixo de 5% ao ano, e ingressar no clube de países de inflação baixa.
Desconsiderando-se os 18 primeiros meses do Plano Real – inflação acumulada de 18,6% no 2º semestre de 1994 e todo o ano de 1995 (22,4%) –, é de 6,2% a inflação média anual até nov2023. Inflação média relativamente elevada para 30 anos da moeda Real.
Um aspecto positivo, hoje, é o fato de que o bafafá em torno do que seria a “maléfica” independência do Banco Central ganhou certo volume, mas não teve sustentação diante da impávida postura da presidência do BC, desde o governo anterior. A fumaça durou alguns meses, mas a sensatez venceu, chegando-se ao fim do ano com expectativa de inflação abaixo do teto da meta (4,75%) em 2023.
A recentemente nova instituição da independência do BC segue intocada. E fica prevista, para o triênio 2024-2026, a meta (central) de 3,0% em cada ano, com piso de 1,5% e teto de 4,5%. Uma relativamente otimista expectativa. Se alcançada – e que seja com crescimento razoável – significaria grande distância da média histórica de inflação anual ainda acima de 5%.
O que nos falta? Crescimento sustentado, aquilo que ainda não foi alcançado depois de três décadas desde o Plano Real. O que tem muito a ver com o já antigo problema da desindustrialização precoce da indústria, entre outras razões multifatoriais, incluídas reformas institucionais – das quais a sofrida reforma tributária recente é um avanço ainda a ser submetido ao teste da realidade, dado o perfil legado por arranjos políticos com configuração um tanto peculiar. Tal frustração do desempenho da indústria, em contraste com o notável avanço da esfera agrícola, fez o Brasil voltar a ser, no comércio internacional, país primário-exportador.
No médio e no longo prazo, o atraso educacional – mantida frustrante perenidade – pode continuar impedindo adequada expansão da oferta de trabalho qualificado; obstáculo ao potencial alcance de aumento da produtividade e fortalecimento da competitividade e do crescimento da economia como um todo.
Tarcisio Patricio, Doutor em Economia. Professor da UFPE, aposentado