OPINIÃO

Sobre bofetadas

Resta-nos o exercício quotidiano da busca de garantir cidadania e perseverar na atividade política associativa, sempre com antenas ligadas na prática de crítica propositiva.

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TARCISIO PATRICIO DE ARAUJO

Publicado em 02/01/2024 às 0:00 | Atualizado em 03/01/2024 às 10:31
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Melhor seria iniciar a jornada de 2024 com algo leve. Difícil. Os tempos continuam ásperos. E faz bastante tempo. Parto da hedionda agressão a uma mulher, que parecia "trans" na visão do agressor, "alertado" pela esposa incomodada com a presença de quem seria uma pessoa "diferente" no banheiro feminino. Incidente que se deu no bar Guaiamum Gigante, bairro de Casa Forte, no domingo 24/12/2023, o que motivou o artigo "Um murro na cara de todas nós", da vereadora Cida Pedrosa (nesta janela 'Opinião' do JC, 29/12). Na verdade, foi - também - um soco na cara do cidadão brasileiro ainda capaz de se chocar com atrocidades, com a maldade humana. Assim, abordo o sentimento global que se contrapõe ao de bondade e não entro no campo da ótica 'identitária', embora reconheça o desconforto pessoal, sofrimento, medo, especificamente da mulher, no exercício quotidiano - como toda cidadã - de ser, ir e vir, e estar em algum lugar. O que, com particularidades próprias, se aplica a pretos e brancos socialmente desvalidos.

A despeito do alto custo da relembrança, é útil que se mencione outra agressão, verbal, mas horrendamente corrosiva, do ex-presidente 2019-2022, em 2003. Já deputado eleito, esbravejou - em discussão com a deputada Maria do Rosário - algo como "não lhe estupro porque você não merece". E repetiu a dose, em 2014, fazendo um 'recall'. Fatos ocorridos em dependências do próprio Parlamento. Não foi uma horrenda agressão à civilidade? Mesmo assim, o tivemos como presidente eleito. Vale sempre enfatizar-se que fica a herança de uma extrema-direita que vivia nas sombras e, não de repente, passou a se mostrar, tornando-se potencial ameaça à democracia. Ademais e infelizmente, há um processo de retro-alimentação entre tal extremo e seu oposto, o aguerrido núcleo da esquerda. Sempre oportuno lembrar que o chavão retórico "nós contra eles", depois "nós e eles" - gestado em 2009-2010, campanha eleitoral de Dilma - veio a ganhar, em 2018, a companhia dos slogans do adversário no reforço da tal "polarização'. E isso fez um grande mal à nacionalidade brasileira. Permanece na pauta o baita desafio de se dissolver tal dualidade dos contrários. Um princípio basilar é ter claro que o governo 2019-2022 não é fator de origem de todos os nossos males.

E os desvalidos do Brasil não deixam de levar bofetadas. Faz tempo. Quer soco na cara maior do que a ressurreição do quinquênio para juízes, por ato monocrático do ministro Dias Toffoli, pelo que cada juiz nomeado desde 1990 deverá ter compensação por algo que havia sido extinto em 2006? Pois o chocolate a cada juiz poderá ser de até R$ 2 milhões (o montante total beira o bilhão). Não é um tapa no rosto da maioria da população, em país tão desigual? Afinal, trata-se daquela que é a principal, e muito bem remunerada casta do serviço público neste país de oligarquias.

O detalhe, simples, sobre a condição humana, é que o mal que nos é próximo (atingindo parentes, amigos, conhecidos, gente da nossa tribo) é sentido com dor imensa. O que ocorre distante - no tempo e no espaço - é assimilado de outra forma, com solidariedade que pode ser até sincera, mas é algo distante. E cada desgraça vai esmaecendo a memória da última. Em países como o nosso, estamos sempre remetendo a arquivos mortos da memória certas desgraças, quando uma nova nos atinge.

Não muito animador para um começo de ano, mas que se há de fazer? Resta-nos o exercício quotidiano da busca de garantir cidadania e perseverar na atividade política associativa, sempre com antenas ligadas na prática de crítica propositiva. Uma coisa que clama por atenção é a escandalosa instituição dos fundos eleitoral e partidário. É só ver como é distribuída a grana que sai do nosso bolso para tais fundos. Neste país de cidadãos de classe média pagando planos de saúde impagáveis. E os velhos, muito caros, sendo jogados à própria sorte. "Pudera, são velhos inúteis..."

Tarcisio Patricio, doutor em Economia, professor da UFPE, aposentado

 

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