A arte de presentear, mimar e ser delicado
As coisas triviais do nosso dia a dia constituem a espinha dorsal da nossa vida em sociedade: são os escritos banais, as coisas banais, os sentimentos banais, os amores banais
As coisas triviais do nosso dia a dia constituem a espinha dorsal da nossa vida em sociedade: são os escritos banais, as coisas banais, os sentimentos banais, os amores banais... A maioria dos escritores sabe disso. É suficiente a leitura da obra “Metamorfose”, de Kafka – tendo um inseto como núcleo do enredo; do poema “relógio” do escritor Mário Quintana, comparando o relógio de parede a um animal feroz; da poesia “revelação”, de Eliane Cruxên: “a escrita me coisa/ sou espelho/ sou janela, sou lente com fome de mistério...
Mas vou falar, prometo, do tema “presente” dizendo que a ficção na literatura não existe. Tudo está resguardado no inconsciente humano daquele que escreve-nosso “eu” desnudado, acanhado e incapaz de mentir”. Vou comprovar o que afirmo. Num dia e ano qualquer recebi a visita de uma amiga gaúcha. Escutei ela rezingar, elegantemente, quando deixava o quarto de banho: “Fiquei com os pés imersos na água ao usar o chuveiro”. Chamei a auxiliar e ela responde: “Ah! é só abrir o ralo. Eu fecho para as baratas não entrarem”. Envergonhada, imaginei o inseto horripilante em voo rasante e numa atitude de vis a vis. Lembrava a descrição inserta na última publicação da Sobramesao comentar o livro de Ana Maria César - “A barata e a rosa”.
Admito – e posso estar errada – que apenas os portugueses reconhecem a diferença entre “presente”, mimo e gentileza. No léxico português, eles integram a mesma estirpe. Mas a gramática é ortodoxa, intransigente e implacável. A prática é alforriada, divertida e arguciosa. Vejamos. Há poucos dias eu participava de uma conversa quando uma senhora ingênua brinda o grupo com essa explicação: “eu não tenho problemas de ofertar presentes. Reservei uma gaveta na cômoda, herança da minha avó, para guardar o que recebo ao longo do ano. Só é preciso fazer a embalagem”. É o que costumamos chamar de “passar adiante”. Mas também existe o “presente-lobby” ou lóbi, muito comum naquelas empresas e escritórios que desejam afagar os bons clientes. Igualmente, nas pessoas que esperam receber, mais tarde, a contrapartida do “presente” no formato de “obséquio” especialíssimo. Recordam as joias recebidas pelo ex-presidente?
E não vamos deslembrar os “presentes” descomedidos. Ilustro. Um casal veio jantar em minha casa. Trazia duas cestas contendo doces raros, duas garrafas de vinho estrangeiro com rótulos desiguais, uma “terrine” de pato e outra de salmão defumado. Fiquei sem saber o que eu deveria servir: a minha ou a refeição presenteada.
Da mesma natureza foi o “presente” de um advogado brasileiro a um renomado professor italiano. O primeiro solicitou um estudo pessoal para embasar a exegese de um artigo de lei defendida numa ação. Vitorioso no processo, um alvará de autorização foi convertido em milhões de reais e emitido em nome do advogado-autor. Na tentativa de recompensar a “graça”, o causídico quitou a sua dívida com uma garrafa do vinho italiano Frescobaldi Brunello di Montalcino Manachiara, safra especial. Exatamente como a Mona Lisa, o presenteado revelou um sorriso enigmático ou prenhe de mistério. Na sequência, ele fez um sinal elegante para início de uma conversa comigo. Com a gesticulação dos italianos (mão direita elevada ededos unidos) alega: “Ma come! Sono a San Paolo e non posso portare questo gioiello!...”.
A partir de então fui depositária fiel do “vinho do ódio”. E esperei três anos para decidir enviar uma carta ao destinatário da bebida da redenção espiritual. Na missiva, eu indagava que destino eu daria ao “presente”.A resposta foi objetiva: “Brindate ala vita e all’amore! Questo veramente si chiama sentirsi felice”.
E assim aconteceu numa noite de regalo astuto na morada do presenteador.“In vinoveritas!
O “mimo” é algo mais glamoroso, embora de extrema simplicidade. Em terras camonianas ele se esbalda e grita aleluia, aleluia! Aclaro: quando eu morava em Lisboa costumava juntar as películas brancas das suculentas laranjas portuguesas. Aguardava uma noite insone e estafada para converter o monte de folhelhos em doce de laranja – receita da falecida Sra. Evane Costa Porto, mãe do jornalista e ex-ministro Walter Costa Porto. Numa das ocasiões, incluí uma amizade recente. A senhora telefonou para agradecer e suplicar: “Por favor, da próxima vez não ponhas cravinhos. Eu detesto! ”.
O brasileiro tem pouco apego à etiqueta. Recordo, ainda em Portugal, a aula de uma amiga bem-nascida: “Quando somos convidados para um jantar na residência de uma pessoa formal ou sem intimidade, o protocolo determina o envio, já no dia subsequente, de um ramalhete de flores. Sendo rosas, dê preferência à cor champanhe. Jamais errará. Para os amigos, o gesto é dispensável. A anfitriã ficará radiosa com um abraço terno ou mesmo com um beijinho”. Preciso assinalar que só os amigos verdadeiros são convidados para um jantar ou almoço numa casa portuguesa. As pessoas que não integram essa confraria são recebidas num restaurante.
Vou omitir a “gentileza” porque o espaço no jornal me encalça. A jornalista Rosa Miranda - expert no assunto – desenvolverá esse tema. Sou apenas uma mulher atrevida na arte difícil de pensar e escrever acerca do “nada que é tudo tudo”.
Dayse de Vasconcelos Mayer, advogada e professora universitária.