OPINIÃO

'Recessão democrática' e economia

É indesejável que o Brasil continue refém de heróis salvadores da pátria - populistas - vistos como garantidores de progresso; seja de esquerda, seja de direita, seja quem for.

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TARCISIO PATRICIO

Publicado em 17/01/2024 às 0:00 | Atualizado em 18/01/2024 às 11:46
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Já há registro de que o mundo vive uma "recessão democrática" há quase 20 anos, pelo menos [Larry Diamond - Journal of Democracy, Vol. 26, no. 1, Jan2015]. Uma novidade que constitui anticlímax do que se esperava depois da emergência de grande progresso tecnológico e da mudança qualitativa representada pela derrocada das experiências de socialismo, tendo-se a queda do Muro de Berlim como notável marca. E pasme-se: os EUA assumindo destacado papel no palco da crise 'Democracia Abalada'.

Judiciário (em todos os níveis administrativos), Congresso, independência dos poderes, sistema autônomo de informação e comunicação (mídia no sentido amplo) são instituições basilares da Democracia. No que respeita à mídia, está para se somar à lei de imprensa uma adequada regulação das mídias sociais, processo ainda em construção no mundo. Ademais, definição clara do papel das forças armadas de cada país, guardiã da defesa nacional. No âmbito mais amplo dos direitos individuais - liberdade de expressão, de ir e vir, de exercício da cidadania - há instituições garantidoras, e também as coercitivas; contra calúnia, difamação, agressão, ameaças, informações falsas etc.

Evidente que o funcionamento adequado do sistema econômico - cerne garantidor da sustentação de todo país - também necessita de instituições adequadas, para que os mercados operem com minimização de prejuízos ao cidadão.

É o que a História ensina. Aprendemos que o esperado avanço depois da derrocada da experiência socialista, desde 1989, veio a ser a exacerbação da "liberdade de mercado", em contraste com a evidência empírica de que instituições de regulação - inclusive leis antitruste - podem garantir a concorrência. O mercado, sem regulação, privilegia monopólios e oligopólios. E o liberalismo, em economia, tornou-se o diabo do "neoliberalismo".

A vitória do capitalismo sobre o socialismo se deu com instituições reguladoras, e com importante empurrão da competição - na esfera mundial da economia e da geopolítica - entre capitalismo e a então alternativa socialista. A construtiva alma capitalista, criativa, movida a lucro, atiça o veio da ambição - algo próprio da natureza humana. A História também nos diz bastante sobre isso. A propósito, é bom rever frequente citação de um dos pais do liberalismo em economia. Joseph Stiglitz (Jornal Valor Econômico 12jan2024, 'Vitória antitruste de Biden') traz de Adam Smith esta pérola de quase 250 anos: "Pessoas do mesmo ramo raramente se reúnem, mesmo para festejos ou diversão, mas [quando o fazem] a conversa termina numa conspiração contra o público ou em alguma trama para elevar preços". No original: People of the same trade seldom meet together, even for merriment and diversion, but the conversation ends in a conspiracy against the public, or in some contrivance to raise prices. [Volume 1, Capítulo 10, Parte II, de Riqueza das Nações - parágrafo 27]. Além da identificação exata da fonte - em geral deixada de lado em textos fora da Academia -, importa dizer que Smith acrescentou que criar leis para impedir tais reuniões feriria princípios de liberdade e justiça, mas tais reuniões não deveriam ser algo incentivado. Um alerta sobre a necessidade de se podar excessos do capital, hoje e já há algum tempo tendo o capital financeiro como nó górdio de crises sistêmicas.

O Brasil, neste bloco de nações democráticas, tem a peculiaridade ("tropical"?) de conviver com fortes oligarquias: do mundo rural, da magistratura, de grupos industriais que amam subsídios e pouco ousam em enfrentamento de riscos, essa coisa essencial do capitalismo. Tal conformação se reflete no Congresso Nacional e o país segue - com frequência, às tontas - sem superar atrasos atávicos. Somos uma República de 135 anos, que - nas últimas quatro décadas - viveu metade do período sob ditadura militar, restando a outra metade ainda sem alcance dos degraus da democracia plena, republicana. E, a despeito da idade da República, ainda é um tanto peculiar o lugar reservado ao papel do setor militar na vida brasileira.

No mais, aumento minha aposta de que a Esquerda, sozinha, não vai garantir avanço econômico e democracia plena, sem um arranjo politico com frações da Direita e do Centro, isolando-se os extremos radicais. Aqui e em vários outros países, inclusive os EUA. Em cada país, há que se estabelecer um pacto político com propósitos bem estabelecidos. Difícil se saber se e quando tal alternativa se tornaria hegemônica, face à sólida divisão do eleitorado entre posições político-ideológicas extremas.

No caso brasileiro, permanece a longevidade politica de um líder que aprecia o enaltecer a si próprio, postura coerente com o traço pessoal 'erva daninha': no seu entorno imediato da prática política e da governança, nem grama viceja - em se tratando de novas lideranças. Predomina o padrão 'companheiros sempre a serviço do chefe', sob a pretensão de que a Esquerda pode, per se, prover a solução de todos os males.

É indesejável que o Brasil continue refém de heróis salvadores da pátria - populistas - vistos como garantidores de progresso; seja de esquerda, seja de direita, seja quem for.

Tarcisio Patricio, doutor em Economia, professor da UFPE, aposentado

 

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