OPINIÃO

Questão de interesse público

A concorrência é do examinando consigo mesmo. Portanto, hora de começar a enxergar a "paisagem" de terra arrasada, sem a ânsia de colocar a culpa na "janela". Ou não se sairá do ponto-morto.

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Gustavo Henrique de Brito Alves Freire

Publicado em 21/01/2024 às 0:00 | Atualizado em 21/01/2024 às 12:06
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O tema (sensível) do Exame de Ordem, avaliação aplicada pela OAB para admissão em seus quadros, não à toa o maior concurso jurídico do mundo, é dos que se impõe considerar epicêntricos na discussão do nível do ensino do Direito no País, e como tal deve ser enfrentado, jamais admitido o populismo político às suas custas, castigando-se o interesse público. Sempre oportuno reforçá-lo.

Dados de 2022 indicam 1,9 mil cursos de Direito autorizados a funcionar em território brasileiro. Mas e daí? Daí que em lugar algum há tanta oferta de vagas. É ingovernável. Nem se somado for o quantitativo de graduações jurídicas existente nos cinco continentes. Impossível, no rescaldo dessa informação, não esperar problemas sérios de qualidade do "produto" consumível que é colocado no mercado, inclusive na "embalagem" à distância (EAD).

Um segundo dado que chama a atenção: apenas 10% dos cursos de Direito do País possuem recomendação positiva da OAB, em que pese a palavra da instituição não interfira ou influa para a abertura daquele campus e dos demais por parte do MEC. De acordo com a 7ª edição do selo "OAB Recomenda", por exemplo, termômetro da entidade para auxílio na aferição da qualidade do ensino jurídico, 192 faculdades selecionadas, em contraponto ao volume de cursos de Direito aptos a operar suas atividades. É aterrador.

Prosseguindo-se nos números, que, como cediço, não têm a mania feia de mentir. Pois bem. Entre os anos de 1995 e 2018, isto é, dentro de um intervalo de pouco mais de uma década, o aumento na quantidade de cursos jurídicos foi de 539%. Quantidade inversamente proporcional à qualidade, o que salta aos olhos da análise dos índices de êxito no Exame de Ordem Unificado. Quem disse isso? A Fundação Getúlio Vargas (FGV), organizadora do certame.

Ora, é papel da OAB zelar por um padrão mínimo de suficiência do ensino jurídico, dentro das missões que lhe atribui o legislador (Lei 8.906/1994, artigo 44). Não se trata de uma escolha. Trata-se de compromisso a um só fôlego irrenunciável, irrevogável, intransferível e irretratável. Não é brincadeira. O Exame se justifica em qualquer cenário, mesmo naquele historicamente vivido por esses lados. Ele é uma ferramenta que atesta conhecimentos básicos para o desempenho da profissão que mexe, diretamente, nas vidas das pessoas do princípio ao fim, já que não há sociedade sem direitos e obrigações e sem leis para organizá-la, e sem a aceitação de que, da infância à sucessão post mortem, há regras e cláusulas a serem observadas para que se assegure estabilidade, confiabilidade e previsibilidade à dinâmica da existência humana.

Todos os desafios à mesa foram, outrossim, agravados pela pandemia da COVID-19. Existe um robusto consenso de que o "novo normal" impôs dificuldades aditivas, como as relacionadas à exigência de distanciamento físico e à necessidade de aprendizado de novas tecnologias. De modo paradoxal, a adversidade acelerou a busca de capacitação pedagógica pelos docentes, o crescimento da interdisciplinaridade nos cursos e uma maior humanização no relacionamento acadêmico, que passou a reconhecer questões antes invisibilizadas, inclusive de saúde mental.

Estive em períodos distintos - inclusive o pandêmico - Presidente das Comissões Estadual e Nacional do Exame de Ordem. Posso afirmar que o problema central não está no rigorismo da prova, ponderadas as suas duas fases, a despeito de questões a cada edição anuladas (sempre em número ínfimo) ou de críticas à correção (também via de regra situações pontuais). Solidarizável, pois compreensível, a frustração do reprovado recém-saído da graduação. Nenhuma satisfação traz aos que movem as engrenagens do Exame de Ordem negar em massa aos candidatos a aprovação, afunilando-os para, na média, 20%, aos quais será concedida a habilitação para a advocacia.

Nem a OAB pratica reserva de mercado ou seus dirigentes dormem e acordam obcecados em arrecadar cada vez mais a partir do volume das inscrições para o Exame de Ordem. A concorrência é do examinando consigo mesmo. Portanto, hora de começar a enxergar a "paisagem" de terra arrasada, sem a ânsia de colocar a culpa na "janela". Ou não se sairá do ponto-morto.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

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