As investigações judiciais e criminais em relação a atos antidemocráticos
Enquanto persistir indícios de ofensa ao Estado Democrático de Direito, certamente o inquérito judicial aberto em 2019 tramitará regularmente no Supremo Tribunal Federal, na relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
O Supremo Tribunal Federal pode instaurar inquéritos judiciais ou criminais para apurar condutas delituosas? Pode. No tocante à instauração de inquéritos policiais, vale lembrar que o plenário do mesmo STF firmou jurisprudência consolidada, há mais de 20 anos, no sentido de que para o início de todas as investigações criminais que envolvam autoridades com prerrogativa de foro naquela Corte, deve haver uma autorização antecipada por parte de qualquer ministro daquele Sodalício. Sendo assim, para que haja a abertura de qualquer investigação criminal em que nela exista a participação de autoridades com foro privilegiado, deve haver uma autorização prévia para a sua abertura, por parte de algum ministro do STF. Sem isso, nem o Ministério Público e nem a Polícia Judiciária pode instaurar a investigação criminal. Aliás, o art. 5º, II, do Código de Processo Penal também autoriza a abertura de inquéritos policiais mediante requisição judicial.
Em relação à abertura do inquérito judicial, observe-se que o art. 43 do Regimento Interno do STF estabelece que ocorrendo infração a lei penal na sede ou nas dependências do Tribunal, o Presidente instaurara inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita a sua jurisdição, ou delegara esta atribuição a outro Ministro. O §1º, do mesmo dispositivo, autoriza a abertura do inquérito, mesmo quando a infração penal não tenha ocorrido nas dependências físicas da Corte, desde que atinja a independência do Poder Judiciário ou dos seus ministros. Nota-se, por isso, que é facultativo ao presidente do STF instaurar o inquérito judicial, presentes quaisquer fatos que possam ofender o ordenamento penal brasileiro, nos casos previstos em seu Regimento Interno.
Em 10.04.2018, nos autos do HC nº 152720, a Segunda Turma do STF, por unanimidade de votos, mandou instaurar um inquérito judicial com a finalidade de apurar o uso indevido de algemas, por parte de autoridade policial, entendendo que a atitude adotada havia contrariado o inteiro teor da Súmula Vinculante nº 11, do mesmo STF, que proíbe a utilização de algemas, exceto se houver fundado e comprovado receio de resistência ou possibilidades de fuga ou de perigo para a integridade física própria ou alheia, por ação do preso, se bem que mesmo depois de usada, deve existir uma justificação escrita e fundamentada por parte da autoridade que autorizou as algemas, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal. O argumento para a instauração do inquérito judicial, naquele momento histórico, como se nota, foi o eventual descumprimento doloso à Súmula Vinculante nº 11, por parte de quem realizou a prisão. Sabe-se, entretanto, que até hoje o inquérito não foi concluído.
Em 14.03.2019, pela Portaria nº 69, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, fez instaurar o inquérito judicial nº 4781, com a finalidade de apurar a existência de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças físicas e morais a seus ministros e familiares, que atingiam a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal, dos seus membros e familiares, estabelecendo, em seu teor, a preservação do sigilo nas investigações. Para presidir e relatar o inquérito, no âmbito do STF, o presidente Dias Toffoli designou o ministro Alexandre de Moraes. Esta designação aleatória, em desprezo à distribuição por sorteio, sofreu muitas críticas por parte de constitucionalistas renomados, mas Dias Toffoli, dias após a abertura do inquérito, justificou a designação com base no art. 43 do Regimento Interno da Corte, que permite a autorização por discricionaridade.
O segredo de justiça (sigilo), estabelecido para as investigações, logo que o inquérito judicial foi aberto, tornou os atos praticados pelo relator, ministro Alexandre de Moraes, sem a participação da Polícia Judiciária, nem tampouco do Ministério Público, o que provocou enormes celeumas no mundo jurídico, face aos preceitos constitucionais que garantem o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, sem contar que se esperava, no mínimo, que houvesse a participação da Procuradoria Geral da República, titular da ação penal, opinando e conhecendo todos os atos judiciais editados por Moraes. O relator, entretanto, em sigilo absoluto, impôs ao inquérito judicial os mesmos princípios que norteiam o inquérito policial, onde a ampla defesa e o contraditório não são exigíveis, infelizmente.
Como os ânimos políticos e golpistas se aceleraram com o correr dos dias, comprometendo o Estado Democrático de Direito, inclusive com a locução histórica do então presidente Bolsonaro, em 7 de setembro de 2022, quando publicamente o então Chefe da Nação assegurou que "a partir de agora não mais acato decisão de Alexandre de Moraes" e, ademais, com a tentativa de golpe de Estado, planejada e escancarada abertamente em 08.01.2023, o inquérito judicial prossegue em sua tramitação, até que os anseios golpistas sejam debelados.
O inquérito judicial, todavia, caminha ao lado de outros tantos que foram e estão sendo conduzidos pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público, todos com a mesma intensão de preservar o Estado Democrático de Direito, uma conquista do povo brasileiro, desde a promulgação da Carta Constitucional de 1988.
Por tudo isto, cabe jamais confundir inquérito judicial com inquérito policial. São dois procedimentos absolutamente distintos. O primeiro é exclusivo do Supremo Tribunal Federal, quando abalada as suas prerrogativas constitucionais, enquanto o segundo é prerrogativa exclusiva da Polícia Judiciária (Civil e Federal) e Ministério Público, quando se tratar de investigações em relação a infrações penais envolvendo pessoas com foro privilegiado ou não, dependendo da situação concreta.
Enquanto persistir indícios de ofensa ao Estado Democrático de Direito, certamente o inquérito judicial aberto em 2019 tramitará regularmente no Supremo Tribunal Federal, na relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
Adeildo Nunes, Juiz de Direito Aposentado, Professor, Mestre e Doutor em Direito de Execução Penal, Sócio do Escritório Nunes, Siqueira & Rêgo Barros - Advogados Associados