OPINIÃO

"Linhagens"

Zeh Rocha foi daqueles que continuou a careira musical e no dia 16 de Março, no Teatro Santa Isabel, apresenta o show LINHAGENS, repertoriando sua longa trajetória.

Imagem do autor
Cadastrado por

FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 27/02/2024 às 0:00 | Atualizado em 27/02/2024 às 10:29
Notícia
X

Lembro que depois da ditadura (1964-85) circulava uma piadinha de mau gosto sobre o grande compositor Chico Buarque, desejando a volta da ditadura para que ele voltasse também a compor aquelas belas e politizadas músicas que marcaram a geração que viveu aquele duríssimo período. Se aceitarmos a tese de Rilke ("Carta a um jovem poeta") de que a poesia é derivada da dor, teríamos então que aceitar que ditaduras -nefastas e dolorosas- produzem grandes obras poéticas ou musicais.

Eu estava no Ginásio de Aplicação (hoje Colégio) entre os anos de 1968 a 74 e tive a oportunidade de participar de grupos de estudo e de movimentos artísticos junto com jovens colegas daquele saudoso Colégio, coisa que não vi mais se reproduzir. Infelizmente!

Ali, naquele berçário de cultura que era o Aplicação, vi nascer o Grupo de Teatro Companhia (do qual eu mesmo fiz parte), encenando peças produzidas pelos próprios alunos ("Frei Serafim" de Jorge Falcão, por exemplo), ou encenando textos de forte conteúdo contestatário, como "O Santo Inquérito" de Dias Gomes, num período em que isto representava riscos pessoais, mesmo para os adolescentes que éramos! Foi o tempo também do grupo de Rock "Aratanha Azul" (João Maurício Adeodato, Thales Silveira...) e do "Flôr de Cactus" (Zeh Rocha -que não se escrevia com H!-, André Lôbo, Sérgio Lôbo...) que tiveram vida para além do tempo em que estivemos naquele Colégio.

A cidade do Recife pululava de grupos musicais naquele período, recuperando um cancioneiro nordestino, afirmativo de uma identidade cultural que os militares no poder não queriam estimular (favorecendo a entrada de músicas americanas e de artistas brasileiros com nomes estrangeiros - Terry Winter, Blue Caps, Brasilian Beatles, Michel Sullivan...). Foi a época, aqui, do Ave Sangria, Banda de Pau e Corda, Quinteto Violado, Flaviola...

Zeh Rocha foi daqueles que continuou a careira musical e no dia 16 de Março, no Teatro Santa Isabel, apresenta o show LINHAGENS, repertoriando sua longa trajetória. Zeh, meu amigo desde aquela época de Colégio, tem a originalidade de explorar a diversidade rítmica de Pernambuco, utilizando temas ligados à natureza, à violência contra os povos originários, construindo sequências harmônicas bastante elaboradas e originais (enriquecidas com "terças" no baixo do violão!). Não é fácil "traduzir" para a mão direita do violão os ritmos do Maracatu de Baque Virado, do Coco de Roda, da Ciranda ou até do Baião, como ele faz neste seu novo espetáculo, músicas que foram interpretadas por gente como Elba Ramalho, Lenine, Boca Livre, Bráulio Tavares...

O trabalho de Zeh, que nasceu naqueles anos do Aplicação, me deixa a sensação de que as duras condições políticas em vivíamos ali, inspirava-nos esteticamente, com o apoio de professores que também nos estimulavam a produzir (Myrtha Carvalho, Élcio Matos, Antônio Montenegro), despertando em jovens como nós a indignação e dor de viver numa ditadura, o que talvez confirme a tese de Rilke naquele famoso livro dedicado a um jovem aluno da Escola Militar de Paris, candidato a poeta!

Eu, de qualquer forma, prefiro a Democracia com sua ampla e diversificadas formas de expressão artística, mesmo que tenha de engolir as mediocridades musicais que surgem e, felizmente, logo desaparecem. Zeh Rocha resistiu e continuou produzindo obra de qualidade estética inquestionável, e de denúncia de nossas novas e insidiosas formas de opressão política e cultural.

Eu já reservei meu lugar no Santa Isabel!

Flávio Brayner, professor da UFPE e da UFRPE.

 

Tags

Autor