OPINIÃO

Motoristas por aplicativos e a difícil regulação de relações fluidas

Uma regulação mal concebida e inadequada pode ter o efeito inverso, prejudicando, em vez de melhorando as condições de vida dos trabalhadores autônomos, no caso, os motoristas de aplicativo. Além da limitada eficácia das regras analógicas para uma economia digital.

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SÉRGIO C. BUARQUE

Publicado em 13/03/2024 às 0:00 | Atualizado em 13/03/2024 às 10:23
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A revolução digital está provocando uma transformação profunda na economia e na sociedade, alterações em vários componentes do mercado e das relações de trabalho, do velho fordismo a formas virtuais e fluidas de produção e distribuição de bens e serviços. As plataformas de locação de imóveis de curta duração (o mais bem sucedido é o Airbnb), é altamente flexível, como uma rede mundial de negócios que conecta diretamente proprietários de imóveis com interessados em locação de curta duração (turistas ou negociantes). Relações fluidas com a mediação por uma plataforma invisível que opera com algoritmos, que conecta, avalia os resultados e divulga as oportunidades.

O Airbnb é uma maravilha para quem oferta os imóveis e, mais ainda, para os que demandam locação de curta duração, seja para negócios, seja para férias. No entanto, nas grandes cidades turísticas, a plataforma está provocando uma desorganização no mercado imobiliário, aumento acentuado de aluguéis, além de disputa do mercado hoteleiro. Por conta disso, várias cidades, como Nova York, Paris e Berlim, estão criando algum mecanismo de regulação das plataformas de aluguel de curta duração. O planejamento urbano, tratando dos interesses coletivos das cidades, pode impedir o funcionamento dos serviços flexíveis das plataformas que agradam às duas partes, proprietários de imóveis e visitantes. Por outro lado, considerando que estão lidando com relações medidas por uma rede de internet e algoritmos, o Estado tem tido dificuldades para controlar, fiscalizar e moderar o relacionamento direto e flexível das duas partes do negócio.

No Brasil, os impactos do Airbnb no mercado imobiliário ainda não ganharam destaque. O transporte de passageiros através de aplicativos e, principalmente, o conflito aberto com os taxistas tem sido a principal preocupação política no país. Os governos estaduais andaram definindo regras para os veículos e os motoristas do Uber e outros aplicativos, de modo a aumentar a segurança dos passageiros e, ao mesmo tempo, reduzir a concorrência desleal com os taxistas. E o conflito entre taxistas e motoristas de aplicativo parece ter sido amenizado, independente de regras ou intervenção do Estado, depois que os taxistas passaram também a utilizar plataformas para ampliar a clientela, adquirindo a flexibilidade e a agilidade do compartilhamento das redes. Em todo mundo têm sido introduzidas regras para o transporte de passageiros por aplicativo, sempre com a intenção de garantir a segurança dos passageiros e a qualidade dos serviços, com exigências da qualidade dos veículos e de capacitação dos motoristas, o que no Brasil já é exigido dos taxistas.

O governo do presidente Lula da Silva tem levantado outro problema decorrente do impacto da revolução digital no transporte de passageiros, nomeadamente a precariedade das relações de trabalho dos motoristas de aplicativos. Preocupação legítima que, no entanto, a julgar pelo Projeto de Lei de regulamentação das relações de trabalho dos motoristas de aplicativo com as plataformas apresentado agora pelo governo, está sendo tratada com conceitos e métodos que são ineficazes e inadequados para a fluidez das relações da economia digital. Jornada de trabalho fixa, remuneração mínima, férias, 13º salário e encargos sociais, além de negociação através de sindicatos são regras da economia analógica do sistema produtivo fordista que não se aplicam às características dos motoristas de aplicativos. Os motoristas de aplicativos são autônomos e independentes e formam uma categoria altamente difusa e irregular na prestação dos serviços e na relação com as plataformas, com flexibilidade de horário e dedicação, com rendimento por quilômetro rodado e não, por tempo de trabalho, todo o contrário das relações tradicionais da economia analógica.

Como não se pode ignorar que o trabalho dos motoristas por aplicativo é precário, como de resto, muitos dos negócios autônomos de baixa qualificação e produtividade, cabe ao Estado oferecer alternativas de melhoria da renda e da proteção social. Entretanto, não existem regras fáceis para relações fluidas e, com certeza, não cabe importar os esquemas da velha economia para a novíssima economia digital. De partida, é importante entender que a precariedade do trabalho, em qualquer atividade, é o resultado do baixo nível de educação e da limitada qualificação profissional dos brasileiros. E que, uma regulação mal concebida e inadequada pode ter o efeito inverso, prejudicando, em vez de melhorando as condições de vida dos trabalhadores autônomos, no caso, os motoristas de aplicativo. Além da limitada eficácia das regras analógicas para uma economia digital.

Sérgio C. Buarque, economista

 

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