OPINIÃO

A bela defunta e o amarelinho

Os contos de Tchekhov bem que podem ser ambientados no sertão pernambucano

Imagem do autor
Cadastrado por

JOÃO HUMBERTO MARTORELLI

Publicado em 21/03/2024 às 0:00 | Atualizado em 22/03/2024 às 10:25
Notícia
X

Em algum município do sertão, todos pranteavam a jovem defunta, cujo esquife foi colocado bem no centro da sala de estar da casa onde viveu felizes cinco anos com o marido já idoso. Quando veio a hora de fechar o caixão, o viúvo desatou no choro: - Não é possível, vejam como é linda minha mulher, que tristeza o resto de minha vida sem ela. E todos concordaram: - Sim, era mesmo uma mulher de primeira classe. - Mas, meus amigos, não era só a beleza nem sua boa índole, eu a amava mais que tudo porque, embora tendo 20 anos e eu 60, sempre me foi fiel.

Foi quando todos, inclusive o padre, pigarrearam, e a dúvida tomou conta do ambiente. - Pelo visto, não acreditam! - Não é que não acreditemos, mas as jovens hoje em dia são tão atiradas, disse o juiz. - Pois eu sei que era fiel, usei um estratagema em que vocês todos caíram, eu espalhei o boato de que ela era amante do Coronel Oliveira. O Coronel, como todo coronel do sertão na época, era homem violentíssimo e temido. - Quer dizer então que sua mulher não estava de caso com o Coronel? perguntaram todos. - Não, senhores, foi esperteza minha. E todos então prestaram seus respeitos à jovem esposa.

Outra boa história é a do amarelinho que roubava as porcas dos trilhos da estrada de ferro. Na delegacia, o escrivão enfezado perguntava: - Com que fim desaparafusavas as porcas? - Porque estava precisando. - E para quê? - Para fazer peso de pescar. - Mas será que não entende que o trem podia ter descarrilhado, morrido gente? - Deus me livre, o senhor pensa que sou bandido, nunca matei, nem vou matar. - E por que o senhor acha que acontecem os desastres de trem? Agora entendo por que um trem descarrilhou ano passado! - Muito bem, doutor, por isso o senhor é instruído, é para entender as coisas, agora, a gente, que é pobre, só o que faz é ser arrastado... - A segunda porca que acharam na sua casa...- Aquela que estava debaixo do bauzinho vermelho? - Não sei onde estava, foi você que desparafusou? - Não, essa foi José, filho do Coronel, que também gosta de pescar, as outras foi o primo dele, filho do irmão do Coronel, que é general de verdade, e que sempre vem aqui pescar com a gente. - Ah, e vocês conseguem pescar o que?

Essas duas historinhas que podem muito bem estar ambientadas no sertão pernambucano são extraídas de contos de Tchekhov, retratando os mujiques russos do final do século XIX. Os coronéis são as Excelências da burocracia da época, os protagonistas gente do povo, igual a nossa gente simples do sertão, que, nem por ser simples, deixa de ser esperta e de ludibriar as maledicências e os interrogatórios. Está aí uma característica da arte universal: por mais particular que seja o meio, o artista, da mais singela das histórias, extrai fatos, sentimentos e emoções que são acolhidas em todos os cantos e em todas as épocas, como uma pintura do luar ou um poema de amor.

João Humberto Martorelli, advogado

 

Tags

Autor