OPINIÃO

O Brasil dos dissabores

Em três décadas, saímos de grandes e justificadas esperanças para um cenário de desilusões. Há avanços: na matriz energética, no mundo rural, na modernização do setor terciário, na aplicação de novas tecnologias... Mas, dissabores abundam.

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TARCISIO PATRICIO DE ARAUJO

Publicado em 27/03/2024 às 0:00 | Atualizado em 27/03/2024 às 10:15
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Registros não exatos de um contumaz hemerotecário brasileiro, em residência temporária na Inglaterra, informam: morreu de bala perdida (stray bullet) um jovem funcionário de um posto de gasolina (petrol station) feito objeto de tentativa de assalto (robbery). Crime ocorrido no Hertsfordshire County, num ponto entre as cidades de Saint Albans e Harpenden – fronteiriças à Londres Metropolitana. Deve ter sido em 1992. Foi notável o impacto na mídia: The Times, The Independent, The Guardian – principais jornais britânicos, tirados os muito lidos tabloides especializados em fofocas (gossips), frequentes nas mãos de leitores nos metrôs.

Época de estagnação-recessão e crise cambial no reino britânico (1990-1992). Quebra do banco central e forte desvalorização da libra esterlina, que – versus dólar – saiu de cerca de 2,0 para ao redor de 1,5. No lado social, crescimento dos ‘homeless’ (nossos ‘sem-teto’) ocupando praças de Londres e mendigando em ruas e nos metrôs, como se volta a ver em Recife; e também da moçada fora da escola. O citado ato criminoso foi o de maior impacto, ou o que mais impressionou o hemerotecário, em quatro anos e meio de estadia no Reino Unido. Época em que ele se deu ao abuso de ser jocoso, ao ver um inglês possivelmente cinquentão trabalhando como flanelinha entre circulantes automóveis, em pontos de semáforo, e tascou: ‘Recife exportando tecnologia’. [Velha mania de arriscar perder um amigo, mas não perder a piada].
Tal reminiscência nasce do contraste com o martírio diário de cidadãos brasileiros que têm o hábito de ver o “noticiário” local e o nacional. Pois bem, faz tempo que mesmo a grande mídia dedica 15-20-30 minutos só a assaltos, roubos, assassinatos, chacinas, mortes por bala perdida, corrupção. Todos temos “direito” ao noticiário ‘bandeira 2’. Um país escangalhado.
Consta que 1990 foi ano de entrada do ‘crack’ no cenário urbano. Poderosa e menos cara, espalhou-se rapidamente. E o Rio de Janeiro já se antecipara como vitrine da criminalidade e de espraiada corrupção no país. Estado de banalidade dessas desgraças. Mas, sempre choca.
Faz poucos dias que, num mesmo noticiário, vieram as pancadas: assassinato de um casal e um bebê no centro de Niterói-RJ e morte de um cidadão por choque elétrico ao tocar um poste energizado, na cidade do Rio de Janeiro, este um fato corriqueiro nas ruas do país. Por onde anda a tal da “segurança cidadã”? Seria interessante saber como se sente alguém oriundo de país desenvolvido ao ser exposto a horrendas cenas urbanas de nosso cotidiano, sem o viés da raiva de aqui ter sido vítima de roubo do celular, por exemplo. E, sim, 1990 é linha de passagem para um quadro de maior gravidade.
Eis que a recente prisão de mandantes do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (14/03/2018) – caso atroz cuja repercussão logo transpôs fronteiras – traz elementos que ilustram o estado de desgraça da histórica ex-capital do Brasil. Trata-se dos irmãos Brazão, ligados a jogo do bicho e milícias – um é ex-vereador, ex-deputado estadual e agora membro do Tribunal de Contas do Rio (!), o outro um deputado federal pelo PMDB. E do dissimulado e desconcertante Rivaldo Barbosa, Chefe de Polícia, executor – meticuloso e frio – de pensado trabalho de sabotagem da própria investigação. Parlamento, Polícia Civil, Tribunal de Contas – contaminados, apodrecidos. Repita-se: o Rio é a vitrine do Brasil que somos. A coisa se espalhou, embora ainda sem a mesma extensão e a profundidade do que se vê no cenário carioca.
Pois bem, estamos comemorando 30 anos do nascimento da moeda Real, impávida testemunha da vitória sobre a desgraça da secular alta inflação – o que foi um grande avanço. E também saudamos os 10 anos da Lava Jato. Este também foi um fato alentador e chegou a nutrir esperanças de grandes mudanças, e de – enfim – Justiça equânime. Poderia ter sido.
Mas, há comemorações do desmonte da Lava Jato. É o caso do vídeo ‘Especial 10 Anos da Lava Jato’, levado ao ar recentemente pela TV Brasil, esta excrescência estatal – criada em berço da esquerda e mantida nos braços da extrema-direita, no governo 2019-2022. [Ainda bem que, no presente contexto de mídia revolucionada pela microeletrônica, esta estatal tem magra expressão midiática. É vagabunda caricatura do Big Brother orwelliano. Na verdade, é mais do que isso: herança stalinista do reescrever a “narrativa”, com intenção de reinventar o passado. Afora isso, torra recursos públicos].

A peça ‘Especial’ resume narrativa construída e consolidada ao longo do tempo, inclusive com ajuda de trabalhos acadêmicos que afirmam a balela de que a Lava Jato “destruiu” empresas e “provocou recessão” (!).
Ocorre que a realidade fornece nova oportunidade de investigações com uso da delação premiada, conhecido na destronada Lava Jato, e usual recurso em países desenvolvidos, com resultados palpáveis no gravame de receitas de empresas envolvidas em corrupção. Tal oportunidade se dá no processo investigativo – em curso – do ataque a instituições republicanas em 08/01/2023, pretendido estopim de planejada anulação do governo eleito em 2022.
É também pedagógico o episódio de corrupção na FGV-Rio, tratado no artigo anterior nesta mesma coluna. Gloriosa fundação e personagens de peso. Investigação frustrada, todavia.
Resumo da ópera: em três décadas, saímos de grandes e justificadas esperanças para um cenário de desilusões. Há avanços: na matriz energética, no mundo rural, na modernização do setor terciário, na aplicação de novas tecnologias... Mas, dissabores abundam.

Tarcísio Patricio de Araujo, doutor em Economia, professor aposentado da UFPE

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