OPINIÃO

Compra o lixo, João

Não tem Praia Limpa que aguente toneladas chegando de todos os córregos, canais e rios ao mesmo tempo.

Imagem do autor
Cadastrado por

SÉRGIO GONDIM

Publicado em 29/03/2024 às 0:00 | Atualizado em 29/03/2024 às 12:14
Notícia
X

A praia foi dormir limpa, limpinha, como resultado do Praia Limpa e do batalhão de funcionários da prefeitura passando o pente fino. Dormiu limpa e acordou imunda.

Como o Recife gosta de superlativos, a maior sujeira de orla em linha reta. A culpa não foi dos banhistas, não foi descuido dos garis e seria injusto culpar o prefeito. Foi vingança da maré. Bastou uma pancada de chuva no dia anterior, arrastando o lixo da cidade para desaguar no oceano Atlântico e, na virada, a maré devolveu com a mesma moeda. Não tem Praia Limpa que aguente toneladas chegando de todos os córregos, canais e rios ao mesmo tempo.

Uma caminhada de quilômetros e uma vergonha danada, plástico sendo o campeão disparado. Em primeiro lugar, os copos, em segundo plásticos indiferenciados, em terceiro, empate entre potes de margarina e goiabada. Em posição mais modesta estão os preservativos, usados.

Algumas curiosidades: qual terá sido o caminho percorrido pela embalagem de chocolate Suíço, até chegar na praia. E a tampa da caixa de Johnnie Blue devolvida à terra firme, atestando que a origem do lixo não está só na pobreza. Um ou outro peixe maiorzinho, faltando a placa de aqui jaz um Baiacu vítima da poluição do mar, sem poder protestar porque se engasgou com a embalagem plástica de um lanche infeliz.

Chamou muito a atenção o fato de que em quilômetros de orla, em meio ao lixo de todo tipo e origem, não havia uma só lata de refrigerante ou cerveja, apesar do enorme consumo. Não é difícil entender, basta seguir o dinheiro. A reciclagem de latinhas é remunerada e os coletores as vezes exageram chegando a pedir o descarte antes do consumidor acabar de beber, para colocar no saco e vender no peso.

O plástico certamente é bem mais barato e pouco atrativo, mas se fosse remunerado de forma proporcional ao dano que provoca, poderia virar o jogo.

Alternativas? Esperar mais de um século para educar as pessoas, ampliar a infraestrutura de coleta, reduzir as diferenças. Um Compaz em cada esquina, escolas, coisa para gerações.

Com uma verba modesta em relação ao que é gasto com shows nem sempre educativos, que tal comprar o lixo plástico? Usando um percentual da taxa de coleta, toneladas seriam recolhidas antes de chegar ao córrego que vai dar no mar. Haveria economia na varrição, na desobstrução de galerias, nos gastos com inundações, sem falar na qualidade da cidade e na saúde da população.

Há poucos dias foi publicado no The New England Journal of Medicine, o resultado de um estudo pioneiro que demonstrou aumento significativo de infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e morte nos humanos em quem foram encontrados micro e nano partículas de plástico nas carótidas. A relação causal foi considerada fortemente sugestiva, mas ainda não foi definida a via de entrada do plástico, se no alimento, na água, no ar ou de todo lugar. As partículas penetram nas células e teriam ação nas mitocôndrias interferindo na produção de radicais livres e inflamação crônica, base da aterosclerose. Por enquanto, só sabemos que é assim: foi demonstrado um possível novo fator de risco para doença cardiovascular.

Antes que as dúvidas sejam esclarecidas, o Recife superlativo poderia se transformar na cidade de canais e praias mais limpas em linha reta, de galerias mais livres, de maior coleta remunerada de lixo plástico, de maior respeito à cidadania, além, claro, do maior carnaval em linha reta do mundo. Poderia sair na frente em relação à ameaça global do plástico e se tornar a cidade do mundo com menor quantidade de partículas de plástico nas artérias, em linha reta.

Sérgio Gondim, médico

 

Tags

Autor