As Malvinas de Maduro
A longa disputa diplomática e alguns pequenos incidentes no próprio arquipélago não justificavam uma medida drástica da Argentina que invadiu as Malvinas com cinco mil soldados
Há pouco mais de 40 anos, a Junta Militar da ditadura da Argentina ressuscitou antigas pretensões dos argentinos, que remetem ao século XIX, e decidiram tomar as Ilhas Malvinas, arquipélago remoto do Atlântico Sul controlado pelo Reino Unido. A longa disputa diplomática e alguns pequenos incidentes no próprio arquipélago não justificavam uma medida drástica da Argentina que invadiu as Malvinas com cinco mil soldados e prendeu os 80 militares britânicos que ocupavam o território. Como a motivação da ditadura era, de fato, despertar o nacionalismo dos argentinos para desviar a atenção dos problemas internos e da violência repressiva da ditadura, nada melhor que uma guerra com o poderoso imperialismo inglês. No início, eufóricos, os argentinos comemoram com entusiasmo a retomada do arquipélago que consideravam território da Argentina.
A aventura dos militares argentinos terminou em três meses. Do outro lado do conflito, tinha a dama de ferro, a primeiro-ministro Margareth Thatcher, que andava muito desgastada politicamente com suas reformas liberais radicais e aproveitou a invasão argentina para despertar e mobilizar a simpatia dos britânicos. A ditadura argentina foi desmoralizada com a derrota, o nacionalismo dos argentinos frustrados, deixando no rastro 705 jovens soldados mortos no campo de batalha. A humilhante derrota reacendeu o movimento democrático, virou o jogo e derrubou a Junta Militar que governava a Argentina desde o golpe de Estado de 1976.
Se a história comparada tem algum valor, o autocrata da Venezuela, Nicolas Maduro, deveria analisar a guerra das Malvinas e refletir um pouco mais sobre a sua estratégia de mobilização do patriotismo dos venezuelanos com a tentativa de anexação do território de Essequibo, da vizinha Guiana (70% da área total deste país). A poucos meses das eleições presidenciais, Maduro aperta o garrote na oposição e tenta esconder a profunda crise econômica, social e política que amarga a vida dos venezuelanos com o mesmo recurso utilizado, sem sucesso, na Argentina: explorar o nacionalismo populista. Nada melhor que ressuscitar uma antiga disputa territorial com a Guiana, um país vizinho fraco, mas rico em petróleo e cercado de interesses de potencias econômicas.
Do nada, no ano passado, o autocrata venezuelano anunciou que Essequibo era parte do território venezuelano, convocou um plebiscito que, por maioria esmagadora, confirmou a sua reinvindicação e autorizou o governo a tomar medidas para anexar o território da vizinha Guiana. Independente da fragrante agressão às normas do direito internacional, há quem explique a violência da Venezuela pelo interesse nas reservas de petróleo descobertas, em 2015, na região, estimadas em 11 bilhões de barris. Nenhum fundamento. Ocorre que a Venezuela tem uma das maiores reservas de petróleo do mundo, estimadas em 300,9 bilhões de barris, reservas que a PDVSA, obsoleta e ineficiente, não tem condições de explorar.
Diferente da aventura das Malvinas, que enfrentou a potência britânica, o autocrata venezuelano ataca os interesses norte-americanos na vizinha Guiana, com exploração de petróleo. O anti-imperialismo também toca os corações e mentes dos latino-americanos. Maduro tem também a expectativa de contar com o apoio da Rússia e da China que, no entanto, também têm presença e interesses econômicos no pequeno país. A China tem grandes investimentos na Guiana em projetos de infraestrutura e na exploração de petróleo, através da China National Offshore Oil Company.
Embora tudo fosse apenas jogo de cena para explorar o patriotismo venezuelano, a situação se agravou depois que, na semana passada, Nícolas Maduro assinou a lei que transforma o território de Guiana num Estado da Venezuela, denominado Estado da Guiana Essequiba. Ninguém parece acreditar que Maduro vai invadir e ocupar militarmente, o “novo Estado” venezuelano. Seria um desastre diplomático, total isolamento político, não podendo contar sequer com o apoio dos poucos países do mundo que ainda protegem o governo venezuelano, incluindo o Brasil, que seria diretamente atingido pelo conflito militar na sua fronteira. É lamentável, em todo caso, que o governo brasileiro mais uma vez se cale diante da clara agressão diplomática de Maduro, mesmo depois do presidente Lula da Silva ter investido seu prestígio na mediação do conflito artificialmente criado por seu aliado venezuelano.
Pode ser que, reeleito para o terceiro mandato, Maduro esqueça tudo e o “novo Estado” não saia do papel. Entretanto, o clima de euforia patriótica que ele provocou nos venezuelanos e os seus superpoderes, no meio de uma profunda crise interna, abram caminho para atitudes insensatas e irresponsáveis. Por outro lado, se as tropas da Venezuela não invadirem e assumirem o controle do chamado Estado da Guiana Essequiba, como defende e autoriza a lei assinada agora, Maduro pode provocar uma grande frustração política da sociedade venezuelana envenenada pelo patriotismo. Algo como a síndrome das Malvinas pode ameaçar o seu regime de poder.
Nunca é demais citar a famosa frase do escritor inglês Samuel Johnson - “O patriotismo é o último refúgio do canalha” (que, segundo o seu biógrafo, ele atacava o “pretenso patriotismo” usado como um manto para os próprios interesses). O General Galtieri, da Argentina, e Nícolas Maduro, da Venezuela, se enquadram nesta categoria.
Sérgio C. Buarque, economista