OPINIÃO

Merquior, a flor e o fruto

Ele enfrentou fortes debates e o descabido rótulo de reacionário. Manteve, de um modo geral, a salvo, as relações pessoais. O embate se esgotava no plano das ideias o que tinha de sobra.

Imagem do autor
Cadastrado por

GUSTAVO KRAUSE

Publicado em 14/04/2024 às 0:00 | Atualizado em 14/04/2024 às 7:34
Notícia

Precoce e profundo, assim nos deixou, segundo o ex-Ministro e Acadêmico Eduardo Portela (1932-2017), "a mais fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista: irreverente, agudo, sábio", José Guilherme Merquior, aos 49 anos. No próximo domingo, 22/4/24, completaria 83 anos.

Na "flor da idade", diriam os desconsolados como se existisse um ponto de partida para os viventes. Pensei: morreu na idade da flor, porém no esplendor da milagrosa união entre o perfume da flor e o sabor dos frutos.

Merquior construiu uma obra formidável que sobreviveu às Parcas, divindades mitológicas, que controlam o destino dos mortais. Cantou e continua encantando seus leitores com inesgotável erudição, aguda inteligência e fina ironia, usadas na medida da elegância, mesmo quando atingido pela rudeza dos que não compreendiam o imenso valor do debate das ideias.

Antes de qualquer referência biográfica, o melhor caminho para conhecer Merquior é extrair de sua mente prodigiosa e capacidade de metabolizar ideias reveladoras de "um dos espíritos mais vivos e mais informados do nosso tempo" na palavra de Lévi-Strauss.

Strauss fez uma justa referência. A inédita monografia, "O estruturalismo como pensamento radical", escrita em 1968, na França, aos 27 anos, selou uma longa e sólida admiração entre o jovem discípulo e o consagrado mestre da antropologia, comprovada na frequente correspondência de amizade pessoal e mútuo reconhecimento da dimensão intelectual.

Aliás, é um reducionismo injustificável considerar Merquior, apenas, um "talentoso polemista liberal". Para ele, ser liberal não esgotava a complexidade do ser humano e, muito menos, significava uma opção ideológica com respostas prontas para os desafios pessoais e propósitos políticos. Era um estilo de vida. Coerente, escreveu sobre "Liberalismos", uma árvore dotada de tronco robusto e galhos frondosos compondo o ambiente saudável da variedade.

Os estudiosos da obra de Merquior se espantam com a catedralesca erudição do autor, especialmente depois que Raymond Aron referiu-se ao dileto discípulo como "um jovem que leu tudo". Mas esta impressão que podia incorrer no equívoco da superficialidade ou da apropriação indevida dos escritos, foi fulminada por Roberto Campos, prefaciador da última obra de Merquior "O Liberalismo - Antigo e Moderno", Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991 (escrita em inglês, como se fora uma premonição do tempo insuficiente do autor para vê-la editada no Brasil), ao testemunhar: "O impressionante em José Guilherme não era a absorção de leituras. Era o metabolismo das ideias".

Daí a versatilidade de Merquior que se bifurca em grandes vertentes: obras de crítica literária, artística, estética e trabalhos de sociologia, política e cultura. O ponto em comum dos caminhos percorridos sempre foi a consistência do pensamento e a força da argumentação.

Sua vasta produção intelectual parece não caber nas três décadas de um trabalho ainda que admiravelmente profícuo (19 livros). É a sensação que provoca a leitura da obra do diplomata e escritor Paulo Roberto de Almeida, Construtores da Nação - Projetos para o Brasil de Cairu a Merquior, São Paulo: LVM Editora, 2022, uma fonte que revela por completo a bibliografia de José Guilherme Merquior e o retrato de um temário plural de indisfarçável sofisticação.

Como um crente no racionalismo e na modernidade, assumiu o contraponto firme em relação ao marxismo, à psicanálise e à arte de vanguarda, na visão dele, exemplos de dogmatismo, pessimismo e rejeição. Enfrentou fortes debates e o descabido rótulo de reacionário. Manteve, de um modo geral, a salvo, as relações pessoais. O embate se esgotava no plano das ideias o que tinha de sobra.

Na paisagem da política brasileira, deu amplitude e dignidade filosófica ao liberalismo. Merquior proclamou os dois fundamentos/sínteses da concepção liberal: a independência do espírito e a objetividade do conhecimento. Não surpreende que se autodefinisse como um "anarquista do espírito" expressão usada pelo italiano Luigi Einaudi, segundo o qual, a sociedade liberal se caracterizava por dois aspectos: "o governo da lei e a anarquia dos espíritos".

O próprio Merquior na coletânea de curtos ensaios - O Argumento Liberal (Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1983) afirma: "O liberalismo moderno é um social-liberalismo, é um liberalismo que não tem aquela ingenuidade, aquela inocência diante da complexidade do fenômeno social, que o liberalismo clássico tinha. O liberalismo moderno não possui complexos frente à questão social, que ele assume. É a essa visão do liberalismo que eu me filio".

Em entrevista à Folha (1986), foi mais à frente e se autodefiniu como "um liberal na economia, um social-democrata na política e um anarquista na cultura" o que apontava claramente uma companhia indissolúvel do que denominou de "independência do espírito". A complexidade dos fenômenos era de tamanha diversidade e pluralismo que não caberia nos impérios dos dogmas, substratos de certezas e formas pré-definidas por uma arquitetura produzida pelas limitações do gênio humano.

Para contrariar os neoliberais de raiz e os detratores do Liberalismo, declarou no JB, em 1990, um ensinamento exemplar: "Nenhum liberal que eu conheça disse que o mercado resolve todos os problemas sociais. Daí a necessidade de um Estado protetor. Também não resolve todos os problemas econômicos, daí a necessidade, menor, mas também importante, de um Estado promotor".

Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco

 

Tags

Autor