OPINIÃO

Política Cultural

A cultura, em sua conceituação mais verdadeira e mais legítima, está fundamentalmente relacionada com a pessoa humana

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ROBERTO PEREIRA

Publicado em 19/05/2024 às 5:00
Notícia

Afinal, o que é cultura? A indagação decorre da incerteza de muitos sobre a conceituação de cultura e é básica à compreensão dos que anseiam, aqui e alhures, uma política para seu desenvolvimento.
A vinculação da cultura à prática do lazer, dos desportos e de outras atividades lúdicas, embora pertinente, não preenche de todo o seu sentido. Da mesma forma, também não se deve relacionar cultura com erudição ou arte e memória na citação de frases eloquentes, de autores, de fatos sintetizados nos almanaques, nas enciclopédias ou no Dr. Google.

A cultura, em sua conceituação mais verdadeira e mais legítima, está fundamentalmente relacionada com a pessoa humana, identificando-a e diferenciando-a de todos os entes do universo, dentro de uma concepção física e geográfica.

A cultura não é somente o conhecimento e a cultuação do passado histórico de uma Cidade, de um Estado, de uma Nação. Ela é dinâmica quando situa o homem no “tempo tridimensional” a que se reportava o sociólogo Gilberto Freyre: o passado, o presente e o futuro conjuminados no mesmo instante. Daí a mais aceitável definição dos dias atuais quando proclama a cultura como um permanente exercício de cidadania, que, civicamente, situa a pessoa na sua família, na sua rua, no seu bairro, na sua terra-berço, compreendendo a historicidade de cada momento.

Uma política cultural, por conseguinte, deve se lastrear nos ditames da pedagogia, isto é, deve ensejar um aprendizado, uma capacitação para a vida no seu sentido amplo, colocando o homem na sociabilização da convivência, na liberdade do ser, do pensar e do existir. Consequentemente, onde houver uma diretriz cultural, há também um processo de “aculturação”, cujo produto leva e eleva o homem às alturas da sua grandeza, da sua sensibilidade, da racionalidade que o diferencia dos outros animais.

A cultura de um povo é também o “modus vivendi” de uma gente, com seus costumes e a sua produção na região, as suas características e os seus traços históricos, tudo sintetizado na sua identidade cultural, que é o maior e mais forte elemento de preservação e de independência de um conglomerado de pessoas que possam ser vistas como Vila, Cidade, Estado e, sobretudo, como Nação.
Segundo o Prof. Marcondes Rosa de Souza, da Universidade Federal do Ceará, na cultura estão reunidos e unidos: o homem (agente de cultura), a produção (processo) e a terra (espaço geográfico). Ainda conforme Marcondes, cultura equivale a: “O homem produzindo na Terra.”

A cultura, portanto, é o processo de produção do homem numa certa região, uma vinculação natural às questões socioeconômicas de cada setor, de cada comunidade, transformando-se num patrimônio indelével da sociedade, como um todo.

Parece-me tolice, à luz da interpretação mais ampla do que vem a ser cultura, a insistência de alguns poucos na diferenciação ortodoxa de cultura erudita e cultura popular, como se ambas não estivessem congraçadas no espectro heterodoxo de cultura como manifestação produzida pelo povo e ao povo devolvida como bem supremo da sua identificação, da sua economia, da sua regionalidade.

Por isso não incumbe ao Governo, seja ele federal, estadual ou municipal, o “fazer cultural”, apenas – e tão somente – o ajudar a fazer, incentivando e instigando todos quantos mais se ligam às artes, à literatura, à música, enfim às produções afins e correlatas. Jamais pelo paternalismo que mais deforma os artífices da cultura, mas pela abertura de espaços, de projetos, de subvenções mediante critérios democráticos e sempre levando em conta contrapartidas para que a ação se desenvolva em mão dupla.

Também há de se atrelar à política cultural de uma região toda a política educacional – e vice-versa – da comunidade em questão. O educando não pode, numa escola de qualidade, apenas assistir, passivamente, à ministração, quase sempre monótona, de aulas que obedecem a programas e a currículos, mas nem sempre situam a criança e o jovem no contexto da vida. A arte-educação, a escola-produção, o exercício da cidadania, o conhecimento dos valores históricos da região, o estímulo à produção, são motivações a uma preparação mais consonante com a realidade do hoje e do novo.

Os elementos culturais de uma cidade, sobretudo os mais diferenciados, mais e mais deveriam ser difundidos, inclusive, como atrativos turísticos, porque aos visitantes ilustres não somente interessam as belezas naturais de uma cidade, mas a observação dos costumes daquele povo, daquela região, dos hábitos, da sua produção econômica, dos seus museus, das suas igrejas e monumentos, das suas manifestações folclóricas, da sua produção artístico-cultural.

Aos governos, repita-se, não cabem a criação e a tutelação da cultura, que para aflorar e prosperar necessita apenas de tempo e espaço, motivações e subvenções, democratização do processo e dos meios. Tudo a reclamar o traçado de uma política ou pelo menos de elementos básicos à consecução dos seus objetivos. E somente aos governos incumbem tais e quais responsabilidades? Não, embora historicamente, assim se pensa e assim se diz em falas e falácias.

O lógico é que a sociedade organizada rumine ideias e programas, reúna-se para o arrolamento de meios e elementos fundamentais à concretização desse ou daquele programa. Também o empresariado. Também os produtores e promotores, artistas e artesãos, poetas e cineastas, artistas plásticos e músicos, escritores e ensaístas, compositores e carnavalescos, enfim, todos os que se relacionam na produção do bem cultural.
Fomentar a cultura, difundir os valores da terra, conservar o patrimônio histórico, artístico, cultural e paisagístico, defender o regionalismo e as suas tradições, representam a preservação da identidade cultural, da regionalidade, da independência e do sentimento de liberdade, deixando o homem se mover solto na esteira do tempo, congraçando-o na ciranda do dar de mãos, porque, aculturado, ninguém é uma ilha neste mundo que ainda não é o palco da vida plena ou na vida que não é deste mundo.

Roberto Pereira, ex-secretário de Educação e Cultura de Pernambuco e membro da Academia Brasileira de Eventos e Turismo.

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