OPINIÃO

Nem é sul, nem global

O Brasil é uma potência regional com um regime democrático e uma economia de mercado que tem, portanto, muito mais afinidades com a Europa e mesmo com os Estados Unidos, que com o bloco liderado por China e Rússia.

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SÉRGIO C. BUARQUE

Publicado em 05/06/2024 às 0:00 | Atualizado em 05/06/2024 às 11:08
Notícia

Durante boa parte do século XX, com o planeta dividido entre duas grandes potências antagônicas - Estados Unidos e União Soviética - formou-se um importante agrupamento de nações chamado de Terceiro Mundo, subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, que ficavam na periferia dos dois blocos do tenso equilíbrio bipolar. Fora as nações que se alinhavam a uma das duas grandes potências, a maioria do Terceiro Mundo se posicionava como não-alinhados, preferindo manter distância da disputa geopolítica entre os norte-americanos e os soviéticos, muitas vezes aproveitando a briga para tirar vantagens dos dois lados. No início dos anos 80, o ex-chanceler alemão, Willy Brand, tentou escapar da dicotomia lançando uma iniciativa internacional mobilizando os países ricos de enfrentamento das desigualdades do planeta. Publicou o relatório "Norte-Sul: Um Programa de Sobrevivência", como um guia para fomento ao desenvolvimento dos países pobres que, de fato, estavam, quase todos no Sul do planeta. Como boas intenções não são suficientes para mudar uma realidade dominada pela disputa de hegemonia das grandes potências, o relatório de Brand foi enfeitar prateleiras.

O que mudou, mesmo, o cenário internacional foi o desmonte da União Soviética, no final do século passado, levando junto a bipolaridade do confronto geopolítico global e, portanto, abrindo caminho para a hegemonia unipolar dos Estados Unidos, num mundo fragmentado e instável de nações. Nos últimos anos, contudo, a China vem emergindo como uma das maiores economias do mundo e o principal parceiro comercial da maioria das nações, passando de uma potência regional para um poderoso ator na geopolítica global. Com o lançamento da Nova Rota da Seda, o governo chinês segue uma estratégia de intensificação do comércio e ampliação dos investimentos em vários países de todos os continentes, consolidando sua influência global.

Com a aproximação econômica e política com a Rússia, aproveitando o isolamento deste país depois da invasão da Ucrânia, a China passou a assumir uma liderança mundial de peso que está levando a uma nova bipolaridade global. Excetuando a crescente ameaça a Taiwan, a China não demonstra pretensões militares, mas conta para isso com o expansionismo russo e suas seguidas ameaças nucleares, com o aliado Putin tentando reeditar o "equilíbrio do terror" que perdurou na guerra fria. Curiosamente, os dois grandes países da Ásia que, por diferentes caminhos, abandonaram o modelo comunista, formam agora um novo bloco de poder que quebra a hegemonia unipolar dos Estados Unidos.

Na medida em que a influência chinesa cresceu, inventaram agora o conceito de Sul-global para o grande bloco dos países com interesses econômicos e com semelhanças políticas que se alinham em torno da China, uma espécie de extensão do grupo de países do BRICS, com nações árabes muçulmanas e monárquicas. O termo é enganador, intencionalmente enganador. O bloco não é Sul, nem global. Constitui, na verdade, uma aliança de nações muito diversificadas em torno da liderança da China, que está no hemisfério Norte e pretende construir um novo polo de poder geopolítico. A bipolaridade é sempre melhor que a hegemonia unipolar, uma única grande nação com completa influência política na cena internacional. Mas será muito perigosa se vier acompanhada de uma corrida armamentista e do "equilíbrio do terror" nuclear propagado por Putin. Por outro lado, a China é um país integrado à economia mundial com um regime autoritário, a Rússia constitui hoje um capitalismo oligárquico, e o bloco tem atraído várias nações com monarquias autocráticas do Oriente Médio.

Como entra o Brasil neste agrupamento? O interesse econômico e comercial justifica a aproximação do Brasil a este bloco de nações, principalmente com a China, que já é nosso maior parceiro comercial. Mas o governo brasileiro, sempre com a cabeça no passado, parece entender o tal de Sul-global como uma reedição do terceiro mundismo do século passado, avançando num claro alinhamento político e ideológico com o bloco hegemônico da China. O Brasil é uma potência regional com um regime democrático e uma economia de mercado que tem, portanto, muito mais afinidades com a Europa e mesmo com os Estados Unidos, que com o bloco liderado por China e Rússia. Diante de uma nova bipolaridade mundial, o Brasil deve manter sua posição de independência nas relações internacionais, não se alinhar a nenhum dos dois polos hegemônicos. E acabar com esta pretensão de liderar o Sul-global que, no fundo, representa uma adesão à China na sua disputa hegemônica.

Sérgio C. Buarque, economista

 

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