Desqualificar vítimas de crimes sexuais é inconstitucional

Foi com base em conjunturas verídicas que o Plenário do STF retomou o julgamento da ADPF 1107 em que se discutem práticas de desqualificação

Publicado em 03/07/2024 às 5:00

Na cenografia despojada estão apenas algumas cadeiras empilhadas, formando uma espécie de pirâmide. Um painel de madeira reveste o fundo do palco, mimetizando a atmosfera solene de um tribunal. Vestida com beca preta, Débora Falabella vive seu primeiro papel solo no teatro como a advogada Tessa Ensler, uma jovem profissional em ascensão. Na peça Prima Facie, com direção de Yara de Novaes sobre texto da dramaturga australiana Suzie Miller, a atriz entrega uma performance de alto nível. Já nos primeiros minutos, transmite à plateia a adrenalina que a invade quando assume a defesa de quem contratou seus serviços. Seus movimentos têm a precisão e a suavidade de uma caçadora habilidosa, uma especialista na arte de aguardar o momento certo para agir.

O depoimento que vier a desfavorecer seu argumento passará a ser neutralizado por uma sequência de perguntas desconcertantes. Tal método de inquirição beneficiou inúmeros clientes, inclusive aqueles acusados de abusos sexuais. A alegação da vítima de ter sido submetida a violência de tal monta será paulatinamente soterrada por suspeitas plantadas: “incentivou”, “concordou”, “estimulou”, “provocou”, “deu a entender”. A advogada celebra a vitória que sabe ser iminente. Para o réu, a absolvição.

Se na primeira metade do monólogo vemos as técnicas de arguição como ferramentas úteis à defesa, em sua segunda parte, Tessa Ensler se desloca da posição de operadora do Direito para a de vítima de estupro. Com a reviravolta, a trama ganha em velocidade e impacto ao nos entregar uma mulher, antes vestida com o manto do profissionalismo, agora despida em sua vulnerabilidade de violentada. Tessa e um colega de trabalho haviam começado um flerte, que caminhou para maior intimidade, mas cruzou fronteiras que jamais devem ser ultrapassadas: a consumação do sexo sem consentimento.

Agora como elemento-chave na peça acusatória, a protagonista, que de algoz virou alvo, precisa responder perguntas que expõem a sua conduta sexual, com insinuações que têm como única finalidade desacreditar a sua versão dos fatos. A consternação que emana da cidadã Tessa nunca encontrou correspondência na Tessa advogada. É palpável sua perplexidade diante da impassibilidade do magistrado, permitindo que o advogado de defesa devasse a sua vida, ignorando o único critério admissível em contextos como o dela: o não é não. A sala onde transcorre o julgamento, antes um oásis seguro para Tessa, agora se assemelha a uma arapuca que se fecha cada vez mais sobre sua pessoa.

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Foi com base em conjunturas verídicas, correspondentes àquelas representadas pela personagem ficcional, que, no dia 22 de maio de 2024, o Plenário do STF retomou o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1107), em que se discutem práticas de desqualificação de mulheres vítimas de violência sexual. Ficção e realidade convergem ao expor uma situação que ocorre corriqueiramente, na “vida real”, dentro das cortes de todo o Brasil: uma retórica que retira da mulher o direito a dizer não, a qualquer momento, frente a um avanço sexual indesejado.

Com relatoria da ministra Cármen Lúcia, a ação, protocolada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), pede que a Corte proíba questionamentos sobre a vida sexual pregressa da vítima, bem como de seu modo de vida, durante a apuração e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual. A ADPF visa o controle de constitucionalidade com o objetivo de evitar ou reparar lesões causadas por atos que desrespeitem preceitos fundamentais da Constituição Federal de 1988. Para a PGR, é flagrantemente inconstitucional o viés discriminatório estabelecido por linhas de inquirição que buscam desviar o foco dos crimes contra a dignidade sexual redirecionando-o a um julgamento moral da vítima, cabendo ao Estado, portanto, o dever de coibir o uso de estratégias similares.

Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia foi certeira ao apontar a inaceitável prática da vitimização secundária, diretamente relacionada com o padrão de perguntas que forçam a mulher que sofreu violência sexual não apenas a revisitar incessantemente as circunstâncias traumáticas, mas a duvidar de sua própria contribuição na sequência de eventos nefastos. Permitir que, num tribunal, seja empregada uma linha de questionamento que implica em coautoria, o “fazer por merecer”, é retroagir em avanços tão duramente conquistados. É devolver a mulher a uma condição de inferioridade e não de emancipação e igualdade.

O pedido da PGR, acatado pelo voto da relatora, é que as partes e seus advogados se eximam de mencionar o histórico da vida sexual ou estilo de vida da vítima durante o processo, cabendo ao juiz interromper a prática e desconsiderar tais alegações no curso do julgamento. Espera-se que, com a decisão, audiências e julgamentos que lidam com uma matéria tão avassaladora quanto os crimes que atentam contra a dignidade sexual tornem-se um lugar de acolhimento e não de revitimização.

Gisele Martorelli, advogada

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