Dona Magdalena

Quando estourou o golpe civil-militar de 1964, e seu marido Miguel Arraes foi levado do Campo das Princesas, Dona Magdalena contava 35 anos

Publicado em 17/07/2024 às 5:00

Quando o papel de Primeira-Dama resta por vezes desmerecido pelo comportamento ou pela propensão à frivolidade, e então a análise do respetivo período não se opera sob o prisma da etiqueta, mas da aptidão para fazer ou não fazer a diferença, a história aponta em figuras como Magdalena Arraes a direção correta a seguir.
É do reverendo norte-americano Martin Luther King a frase: “Devemos construir diques de coragem para conter a correnteza do medo”. Indiscutivelmente, Dona Magdalena, Primeira-Dama do Estado de Pernambuco por três vezes, fez da sua existência nessa condição, sobretudo, um dique de coragem. Este é o seu epitáfio neste momento de despedida do plano terreno.

Quando estourou o golpe civil-militar de 1964, e seu marido o Governador Miguel Arraes foi levado do Palácio do Campo das Princesas, Dona Magdalena contava 35 anos de idade. Era uma jovem mãe, ungida mulher guerreira. Presenciou de perto a violência crua do autoritarismo e a sua sem-cerimônia em relação ao cânon sagrado da vontade popular expressa através do voto.

A história narra que Arraes, naquele fatídico 31 de março, conversou com o Presidente João Goulart, que relatou as dificuldades então encontradas pelo governo federal, além da situação política em Minas Gerais. No mesmo dia, Arraes seria deposto, mas ainda confiante em uma solução democrática para a crise institucional, cuidou de enviar uma nota oficial aos jornais do Estado garantido que a situação em Pernambuco estava "tranquila". O golpe, porém, já era fato consumado.

Arraes se reuniu com assessores no Palácio, onde também residia sua família, inclusos os filhos. Foi sugerido que rumasse o para Palmares, na Mata Sul, onde teria condições de resistir. Arraes recusou a proposta, o que findou sendo uma decisão acertada, de vez que tropas do Exército, vindas do vizinho Estado de Alagoas, já ocupavam a cidade. O restante dos acontecimentos está minuciosamente relatado nas melhores bibliotecas.

O fato é que nenhuma mulher passou tanto tempo no papel de Primeira-Dama de Pernambuco quanto Dona Magdalena, e deixou tamanha marca, assistindo ainda à Anistia de 1979 e à consolidação da Nova República no início da década de 1990. Neta de senador e governador do Ceará João Tomé Sabóia, acompanhou a política desde criança. Estudou no Rio de Janeiro, cursou Letras e estabeleceu raízes no Recife, logo após casar-se. Dona Magdalena conheceu Miguel viúvo, que viajara a Paris para uma missão política. O namoro começou e logo se transformou em casamento. Do marido, herdou oito filhos, aos quais se uniram outros dois que tiveram juntos.

Durante a ocupação de março de 1964 por forças militares, fez questão de que todos os filhos fossem à escola normalmente. Já no exílio, trabalhou como professora de Língua Portuguesa em uma Universidade, sonhando retornar ao Brasil.

É de autoria desconhecida a parábola de que, em certo reino, o monarca resolveu submeter à Corte à prova visando preencher um cargo importante. O monarca conduziu todos a uma porta enorme e pesada. Desafiou quem seria capaz de abri-la. Alguns dos cortesãos logo balançaram a cabeça negativamente. Outros, entre os sábios, olharam a porta mais de perto e chegaram à mesma conclusão. O restante concordou que o problema era difícil demais. Somente um único vizir aproximou-se da porta e a examinou. Tentou movê-la de muitas maneiras e, finalmente, puxou-a com força, quando, enfim, a abriu. A porta estava apenas encostada, não completamente fechada. Bastavam a disposição de reconhecer tal fato e a coragem de agir com audácia. Dona Magdalena abriu idênticas portas em sua vida.

Se a palavra é o que convence e o exemplo é o que arrasta, como se atribui a Confúcio, Dona Magdalena soube fazê-lo em sua caminhada terrena e assim haverá de repetir agora que se encantou para a eternidade. No plano celestial, reencontrará Miguel, Ariano, Eduardo e amigos queridos como seus vizinhos Lia e Antônio, meus avós maternos, da Rua do Chacon. Farão juntos então um animado sarau regado a cultura e a causos, legando por aqui saudades, a comprovar que, como bem disse Fernando Pessoa, tudo vale a pena se a alma não é pequena. Descanse em paz, Dona Magdalena. Missão cumprida.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

Tags

Autor