A contraposição das personalidades femininas nos romances de Machado
A contraposição das personalidades femininas nos romances machadianos enriquece a narrativa e oferece uma visão crítica e humanista.....
Machado constrói as personagens femininas utilizando a técnica da contraposição dos seus atributos. Sedução, ambição, generosidade, compaixão, aparecem de forma multifacetada e fascinante
Não sou, nem pretendo ser, crítico literário. A vida me vocacionou, e fiz-me advogado. Ela o fez com soberba e silêncio, sem remeter-me a reflexões no confessionário intimista das noites em claro, pois, se há uma coisa que nunca foi questionada por minha consciência, em qualquer idade, é a da profissão: sou advogado. Parece-me natural, irrecusável. Sinto- me definido. Digo isso para ressalvar ao leitor que não sou cronista, ou comentarista, muito menos crítico literário. Se falo de literatura é apenas para amenizar os muitos sofrimentos e infortúnios dessa nobre, mas estafante ocupação.
Uma de minhas cachaças é Machado. Chama-me a atenção, como terá chamado a tantos, a construção psicológica das personagens femininas por contraposição. Nenhuma mulher machadiana - salvo talvez Capitu, porque Sancha é uma personagem secundária, que aparece em cena apenas para dar o casamento a Escobar, e Capitu é inexcedível em sua força, por isso mesmo, incomparável - existe em seu plano individual e único, a dizer, na maioria de seus romances, os atributos da personagem feminina são contados em uma, depois em outra, algumas vezes em várias mulheres, as personagens não brigam, mas seus atributos são sempre contrapostos.
Em "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), a contraposição aparece entre Virgília e Eugênia. Virgília é a noiva, depois de casada com outro, amante de Brás Cubas, é uma mulher sedutora e ambiciosa, despreza as convenções. Por outro lado, Eugênia, uma jovem que Brás Cubas conhece brevemente, é retratada com uma beleza simples e uma doçura que contrasta com a sofisticação e a astúcia de Virgília. E tem um toque de Joyce: é bela e coxa. Não esqueçamos a também sedutora e depois desgraçada Marcela, que capturou a juventude do protagonista com os mistérios do sexo.
No romance "Esaú e Jacó" (1904), a contraposição se dá entre Natividade e Perpétua. Natividade é uma mulher racional, equilibrada e que tenta agir de maneira justa e ponderada em suas decisões. A irmã Perpétua é emocional e impulsiva. Mas não estará no amor de Flora repartido entre os dois gêmeos, divisão impossível, cujo único desenlace é a morte, uma contraposição perfeita ao amor de Natividade pelos filhos, amor incondicional e definido, embora incapaz de uni-los? Igual reflexão se pode fazer quanto aos reflexos da morte de uma e de outra nos gêmeos.
Em "Quincas Borba" (1891), Sofia e Maria da Piedade são personagens femininas que representam a oposição entre a ambição e a pureza.
Mas é em Iaiá Garcia (1878) que a técnica faz a sua base, curiosamente descrevendo duas personagens (Iaiá e Estela) que, no final das contas, são compassivas e generosas, mas cada uma a seu modo, em relação aos mesmos personagens masculinos. Nesse romance, a arte machadiana de construção psicológica das personagens aparece em todo o seu esplendor.
Essa técnica de contraposição permite a Machado explorar não apenas a diversidade das experiências e personalidades femininas, mas também criticar as expectativas e limitações impostas às mulheres pela sociedade da época. As personagens femininas de Machado de Assis não são meros estereótipos; elas são complexas, multifacetadas e vitais para a compreensão das tramas e dos dilemas morais apresentados nos romances. Em última análise, a contraposição das personalidades femininas nos romances machadianos enriquece a narrativa e oferece uma visão crítica e humanista das relações de gênero e das dinâmicas sociais do Brasil oitocentista.
João Humberto Martorelli, advogado