ARTIGO DE GUSTAVO KRAUSE: "A tela e a nuvem"

Frente ao brilho da policromia, meus olhos enxergavam o azul colorindo o infinito e, na tradição cristão, o céu, dele emanando múltiplas percepções

Publicado em 27/07/2024 às 16:12

Desde cedo, escutava meu pai cumprimentar e ser cumprimentado pelos amigos com a expressão – Com vai? E a família? Tudo azul? – Tudo, respondia, seguido, muitas vezes, de um afetuoso abraço.

Assim, fui apresentado a uma entre as diversas cores – o azul - que, em princípio, embelezam a vida e dão significados às relações sociais de acordo com as preferências e a tradução de múltiplos sentimentos. Na origem, o fascínio não tem explicação obedece a uma misteriosa atração que pode recair sobre qualquer uma delas.

A minha preferência aflorou, quando, criança, assisti ao pastoril, na Matriz de Vitória de Santo Antão, uma espécie de folguedo em que retrata a viagem de um pastor e suas pastorinhas a Belém para ver e reverenciar o menino Jesus.

Herança ibérica, o ritual tornou-se uma manifestação cultural natalina em que dois cordões de pastoras se vestem de azul e encarnado, tendo ao meio da coreografia (dança, cantos e personagens), a Diana, portando as duas cores, sugere uma disputa pacífica decidida pelo número de votos adquiridos pelos dois cordões. A arrecadação se destinava às obras de caridade das igrejas.

Ali, nasceu a paixão pela cor azul que, a exemplo de todas as outras nuances, tem distintos significados e, até mesmo, uma linguagem e uso terapêutico. Frente ao brilho da policromia, meus olhos enxergavam o azul colorindo o infinito e, na tradição cristão, o céu, dele emanando múltiplas percepções como paz, verdade, confiança, calma, harmonia, tudo sintetizado, mais tarde, na visão pioneira e privilegiada do cosmonauta russo Iuri Gagarin (1934-1968) a bordo da nave Vostok I, que, em frase histórica afirmou: “Vejo a Terra. Ela é azul!”, no dia 12 de abril de 1961.

A rigor, o azul inspirou a licença poética de Guilherme Arantes ao identificar a delicada tessitura que envolve o planeta ao compor a canção “Planeta Água”.

Porém, meu encanto definitivo pelo azul vem da obra interrompida pela morte precoce do grande poeta pernambucano aos 31 anos, Carlos Pena Filho (1929-1960). A leitura da poética de Carlos Pena revela o raro dom de unir o estético, o visual, o lirismo envolvente e o movimento da luz que gerou a “poesia vestida de azul”. A propósito, entre as dezenas de referências à magia da cor, as duas primeiras frases do “Soneto do Desmantelo Azul” dão a dimensão de sua íntima relação com a luz refletida nos seus poemas; “Então, pintei de azul os meus sapatos/por não poder de azul pintar as ruas....”

De repente, me reencontro com o azul e, junto comigo, uma parcela significativa da humanidade assustada defronte da silenciosa “A tela Azul da...Morte”: um aviso sinistro de que uma rede global de computadores, interligadas pelos notáveis avanços tecnológicos, falhou ou, alvo de ação criminosa, petrificou as pessoas diante de um fenômeno de dimensão planetária.

São momentos que geram medo e incertezas a serem inteligentemente enfrentados, até porque, são progressos tecnológicos e avanços inovadores. O inevitável é que, neste espaço gigantesco, não passamos de criaturas ínfimas, atônitas e, quem sabe, um dia irrelevantes. Afinal de contas, o que está em jogo é o Poder e a Política na imprevisível dimensão do Humano.

A tela azul, a cor do céu, veio desacompanhado das “nuvens”, as originais, translúcidas, às vezes plúmbeas. Já as cibernéticas, minha pobre ignorância, imagina uma trincheira devidamente armada para proteger todo um sistema de redes sociais na busca incessante da segurança.

Apenas, não consigo me dissociar da companhia das nuvens e no poema “Solidão e sua Porta” (Soneto de Carlos Pena) busco o caminho do Poeta: “com tudo que é insolvente e provisório/e de que ainda tens uma saída: entrar no acaso e amar o transitório.

Gustavo Krause, ex-governador

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