Testemunhas de Jeová no STF: liberdade religiosa e a eficiência da saúde pública

A Constituição Federal assegura o direito de podermos fazer as nossas próprias escolhas existenciais, incluindo as baseadas em convicções religiosas

Publicado em 03/08/2024 às 5:00

O Supremo Tribunal Federal (STF) está prestes a julgar um caso que possui repercussão geral e potencial para impactar as políticas públicas de saúde no Brasil. Trata-se da obrigatoriedade imposta à União, ao estado do Amazonas e ao município de Manaus de financiar uma cirurgia para uma paciente Testemunha de Jeová que, por motivos religiosos, recusou-se a aceitar transfusões de sangue, exigindo procedimento alternativo. O caso levanta questões sobre a interseção entre liberdade religiosa e o direito à saúde, pondo em evidência os desafios enfrentados pelo sistema público ao tentar conciliar as crenças individuais com a eficácia do atendimento médico.

A Constituição Federal assegura o direito de podermos fazer as nossas próprias escolhas existenciais, incluindo aquelas baseadas em convicções religiosas. Este direito à autonomia é um dos pilares da dignidade da pessoa humana e deve ser protegido. Mas, em que pese serem respeitáveis as decisões individuais baseadas em crenças religiosas, é preciso apontar para o fato de que estas não podem comprometer a eficiência do sistema de saúde. Permitir que pacientes recusem tratamentos médicos padrão, baseando-se exclusivamente em suas convicções pessoais, pode gerar precedentes que dificultam a administração de recursos já tão escassos e limitados.

O sistema de saúde precisa operar dentro de parâmetros racionais e baseados em evidências científicas para garantir que todas as pessoas recebam cuidados de alta qualidade. Se decisões religiosas individuais começarem a ditar práticas médicas, o risco é que isso comprometa a uniformidade do atendimento. A coletividade sai prejudicada. A manutenção do sistema de saúde depende da adesão a protocolos médicos desenvolvidos para otimizar resultados e garantir a segurança dos pacientes.

Especialmente relevante neste contexto é a recomendação da OMS sobre a utilização do programa de gerenciamento do sangue do próprio paciente. O protocolo visa otimizar o uso do sangue, reduzindo a necessidade de transfusões e melhorando resultados clínicos. A aplicação prática no Brasil, no entanto, exige uma reestruturação considerável do sistema de saúde. Isso incluiria a necessidade de treinamento para os profissionais, a aquisição de novos equipamentos e tecnologias, além da atualização dos protocolos clínicos. É justo que esse esforço seja direcionado a determinadas pessoas única e exclusivamente por conta de suas crenças religiosas?

Garantir que todos os pacientes tenham acesso a cuidados de saúde de alta qualidade, independentemente de suas convicções, é um princípio fundamental que deve guiar as políticas de saúde pública. Permitir que as crenças religiosas individuais determinem a natureza do tratamento recebido cria um sistema desigual, onde determinados têm acesso a opções de tratamento que não estão disponíveis para outros. Além disso, o impacto econômico desta decisão pode ser considerável. O Brasil já enfrenta sérios desafios relacionados à gestão dos recursos na saúde. A introdução de tratamentos diferenciados para um grupo específico de pacientes estabelece precedentes que levam a um aumento exponencial de demandas semelhantes. A sustentabilidade do sistema fica ameaçada se a exceção se torna norma.

O sistema de saúde pública deve ser desenhado e pensado de forma a garantir a máxima acessibilidade e igualdade de tratamento. As políticas devem ser orientadas para oferecer um nível consistente e elevado de cuidados que beneficiem a todas as pessoas, sem discriminação. É necessário encontrar um equilíbrio que respeite as crenças individuais sem comprometer a igualdade de direitos no atendimento médico. Somente através de um sistema de saúde universal e amplo será possível garantir que todos os cidadãos e cidadãs tenham acesso aos melhores cuidados possíveis, independente da crença ou filosofia que exerçam em suas vidas privadas.

A questão central não é sobre a liberdade religiosa, indiscutivelmente um direito fundamental e constitucional. A preocupação está na capacidade do sistema de saúde manter sua eficiência diante de demandas crescentes por tratamentos diferenciados baseados em crenças pessoais. Permitir exceções amplas e constantes pode comprometer a uniformidade e a qualidade dos cuidados de saúde oferecidos a todos os cidadãos. Estabelecer esse precedente pode fragmentar um sistema já muito castigado.

Liniker Xavier. Jornalista com MBA em marketing (FGV), doutor em religião (Unicap), especialista em comunicação política (UFPE).

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