Procissão do Carrego da Lenha
A procissão avulta como um patrimônio indelével e imaterial, social e cultural, histórico, de há muito incorporado ao cenário religioso.

A Procissão do Carrego da Lenha é um cortejo que, segundo os relatos orais professados entre as pessoas da comunidade, ocorre desde os longes de 1.555, quando foi inaugurado o templo católico em homenagem a São Lourenço.
E por que da lenha? A procissão passou a ser, desde então, uma triste lembrança da fogueira na qual o santo-mártir São Lourenço morreu queimado no início do Cristianismo em Roma.
Quem já participou dessa procissão, sente a magia, há mais de 400 anos (469 anos, se contarmos a partir de 1555), o mistério da fé e a aglutinação da força de centenas de devotos de Goiana, da Zona da Mata e do Litoral Sul da Paraíba.
A idade desse cortejo, segundo o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Goiana (IAHGGO), proponente do reconhecimento da procissão como patrimônio imaterial de Pernambuco, num expediente magistral assinado pelo presidente e vice-presidente, respectivamente, Harlan Gadelha Filho e Solange Guimarães, após a escuta à comunidade, indicam um tempo de 130 anos do evento em tela.
A procissão, na sua essência, é a magia de uma forte presença de São Lourenço, que, no seu martírio, entregou-se a Deus com o fervor movido a muito amor, amor e devoção ao seu povo, à sua gente.
Os devotos andam, a bem caminhar, pelas principais ruas de São Lourenço, saindo o cortejo da porta da Igreja de forma alegre e efusiva, festivamente, acompanhado de uma das bandas musicais e seculares de Goiana, a Curica ou a Saboeira e com a bandeira do Santo Mártir pela Rua da Matriz/Rua do Rosário, buscando os devotos os gravetos/madeiras que estão na principal entrada da comunidade; festivos, pegam e levam a depositar na frente da igreja; na sequência, em romaria vão rumo à Rua da Praia (sentido da rua que dá acesso à Carne de Vaca), próximo de uma quadra, apanham outros gravetos/madeiras e, efusivos, retornam para de novo depositar na frente da igreja, num ritual de fé e devoção.
A procissão emociona a todos os participantes que sentem, com fé, esperança e amor, o devotamento ao seu santo protetor, inspirador do destemor, da coragem de sua fidelidade aos designíos de Deus. Os gravetos/madeiras são emblemáticos, representam o sofrimento do Santo no seu martírio, na sua dor, agrura compartilhada entre os nativos que parecem abraçar as feridas do fogo, cicatrizes que assombram menos porque maior é a fé que avulta entre os corações dos moradores daquela localidade e da circunvizinhança.
A candura dos acompanhantes da procissão leva e eleva São Lourenço aos cantos de louvor, à música e à poesia popular, ao devotamento dos católicos e, até, dos poucos católicos, mas, cristãos, que enxergam no santo a imagem do Cristo Salvador.
De Manoel Cosme a poesia Secular Procissão, muito admirada por quem a lê, enxergando o essencial mesmo que invisível aos olhos, como apregoa Santo Exupery no seu livro Pequeno Príncipe, que é a seguinte:
Secular Procissão, poesia de Manoel Cosme:
Povoação estar em festa / Viva a tradição, / O povo carrega a lenha / Na secular procissão.
Pra lembrar o martírio / De são Lourenço nosso irmão / Pedindo vossa proteção / Segue em frente a multidão.
Grande devoção / Acende a chama da fé / Seguindo a bandeira / Marcando forte no pé
Nosso povo sofrido / Recebe com gratidão / Bendito sejam os crentes / Dessa nobre louvação
O eco da tradição, transmitida pela voz dos moradores, é que, desde a fundação da igreja que acontece o carrego da lenha, ou seja, no século XVI. Saliente-se, todavia, que, em Pereira da Costa, no livro Folk-lore Pernambucano (2004, p. 287) encontra-se informações cabais que asseguram:
"De Goiana, porém, temos presente uns autos de congos, em louvor de S. Lourenço, cujas representações se efetuavam no dia de sua festa, em Tejucupapo, celebrada na igreja matriz, de sua própria invocação."
A peça se inicia assim:
Ó meu sinhô São Lourenço / Ai! lê lê / Aqui tá seu Zepretinho, / Ai! lê lê / Cantando sua zifé, / Ai! lê lê / Isso nos parece guerra, / Ai! lê lê / Manda prepará-lo arma / Ai! lê lê / Para nosso guerreá / Ai! lê lê
Saliente-se o quanto os católicos, inclusive os pouco praticantes, pessoas de diversas religiões, os de religiões afrodescendentes, têm por hábito participar da procissão do carrego da lenha por razões as mais diversas, dentre as quais: pagamento de promessas, diversão, fé, crença, costume familiar, atividade cultural, social, no âmbito local e regional etc.
A procissão do carrego da lenha avulta como um patrimônio indelével e imaterial, social e cultural, histórico, de há muito incorporado ao cenário religioso, um cometimento espiritual associado à fé e ao cristianismo, com raízes afrobrasileiras, obedecendo a um ritual que envolve a igreja católica, a poesia e os louvores, a música embasada no batuque do zabumba, nos ritmos afrodescendentes.
Este cortejo é merecedor de todos os encômios da religiosidade cristã, da fé num santo que ocupa no catolicismo um lugar no altar com o legado do martírio, da vida terrena entregue aos dogmas da Igreja católica, capaz de se imolar em defesa do seu povo sofrido, da sua gente pobre, mas altiva e cujas cicatrizes são um clamor de amor às gerações que se sucedem no caminhar de uma procissão em louvor da crença em São Lourenço, santo e mártir deste mundo para Deus e para a Mãe Santíssima
São Lorenço, eternizado no altar da Igreja daquele distrito de Goiana, "quanto mais se afasta no tempo, mais se vai da Lei da Morte libertando, fazendo morada nos corações dos quilombolas de São Lourenço, dos seus fiéis que, no imaginário popular sabe cultuar aquele em cuja fogueira fez arder o amor à sua gente sofrida.
NB: Parte do Texto do parecer que aprovou, à unanimidade, junto ao Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural (CEPPC), assinado em conjunto com a conselheira Mônica Siqueira, o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Procissão do Carrego da Lenha.
Roberto Pereira, ex-secretário de Educação e Cultura de Pernambuco, membro do Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural e membro da Academia Brasileira de Eventos e Turismo.