Os fones de ouvido perdidos na trincheira

É essencial que as lideranças militares e até civis, atuais quanto as futuras, se adaptem genuinamente aos desafios na guerra do mundo moderno.

Publicado em 31/08/2024 às 0:00 | Atualizado em 31/08/2024 às 11:44

A maioria dos subordinados do Tenente Jaroslav estava distraída, lendo notícias sobre a guerra ou trocando mensagens em seus celulares pessoais, quando o ataque da infantaria russa, apoiada por blindados leves BTR-82, surpreendeu o pelotão ucraniano.

Diante da situação desesperadora, com risco iminente de aniquilação de suas tropas, o oficial recebeu autorização para retrair. Durante o tumulto do desengajamento e sob intenso fogo inimigo, Jaroslav deixou cair seus fones de ouvido no chão da trincheira.

Inferno de Dante! A artilharia ucraniana abriu fogo contra os invasores, enquanto uma força blindada contra-atacou, apoiando o retraimento do pelotão.

No dia seguinte, Jaroslav não encontrava seus fones de ouvido. Pensando que havia deixado o aparelhinho na base, ele abriu o aplicativo de rastreamento em seu celular para tentar localizá-los. Para sua surpresa, os fones estavam agora em território controlado pelos russos. Alguém os havia encontrado na trincheira e começado a usá-los.

Jaroslav relatou o ocorrido aos seus superiores, que rastrearam a geolocalização do dispositivo e encontraram muitos outros sinais de celulares na mesma área. O oficial de inteligência deduziu que se tratava de um posto de comando inimigo.

O comandante da brigada ucraniana ordenou então uma concentração de fogos, envolvendo artilharia, mísseis, helicópteros e tiros diretos nas coordenadas identificadas. O resultado foi a morte de três generais russos, além de centenas de militares feridos ou eliminados, e a desorganização quase total do comando e controle das tropas inimigas.

Embora ficcional, esse relato é totalmente plausível, podendo ter ocorrido em outras circunstâncias e em outros locais. A guerra do século 21, impulsionada por novas doutrinas e tecnologias, se assemelha às cenas de filmes de ficção científica exibidos no passado.

No entanto, apesar das modernidades, Jaroslav e seu pelotão enfrentaram as mesmas adversidades que franceses, ingleses e alemães enfrentaram nas trincheiras de Ypres, durante a Primeira Guerra Mundial. Modernidade e tradição levaram Jaroslav a adaptar sua liderança a soldados mais informados, mais suscetíveis a influências externas, capazes de questionar ordens e menos inclinados a sacrificar a própria vida.

Das lições que podemos tirar dos conflitos atuais, a mais relevante, a meu juízo, é a necessidade mandatória de ajustar a liderança militar. Isso envolve combinar coragem, força física e exemplo de abnegação com ordens fundamentadas em conhecimento científico, habilidade com novas tecnologias e equilíbrio emocional para guiar os subordinados inseguros.

Ciente dessas demandas, o Exército Brasileiro tem incentivado discussões acadêmicas e operacionais sobre o tema, pretendendo fortalecer seus quadros para o desafio de liderar homens e mulheres nos próximos anos.

Busca-se agora uma visão holística, que fuja de um manual do tipo "como fazer para liderar". Diante da velocidade das mudanças no ambiente de guerra, engessar a liderança e encaixotá-la para ser ensinada em salas de aula seria uma abordagem amadora.

A formação profissional e acadêmica dos oficiais e sargentos deixou de ser analógica há algum tempo, mas precisa acelerar o rompimento de velhos paradigmas.

Durante uma visita de membros do poder legislativo na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), um dos membros do grupo observou com certo espanto os cadetes que se preparavam para o deslocamento ao refeitório. Quase todos estavam com celulares nas mãos, absortos em mensagens ou gravações. Por que isso o chamou a atenção?

Ora, esses jovens são um reflexo da sociedade. A farda não os isola dos aplicativos de mensagens, namoro, compras online, pesquisas, notícias ou ChatGPT. A sociedade está cada vez mais dependente da tecnologia e os futuros líderes militares seguem pelo mesmo caminho.

Portanto, é essencial que as lideranças militares e até civis, tanto as atuais quanto as futuras, se adaptem genuinamente aos desafios na guerra do mundo moderno. A história do Tenente Jaroslav pode se repetir, e desta feita em um cenário real.

Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da Reserva

 

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