O malvado favorito

Liberdade de expressão não é vale-tudo. Ninguém está acima das leis e da justiça. Plataformas de comunicação internacionais não são imunes ...

Publicado em 02/09/2024 às 0:00 | Atualizado em 02/09/2024 às 8:11

Umberto Eco disse: "Quando os verdadeiros inimigos são muito fortes, é preciso escolher inimigos mais fracos". A frase permite entender - quando se tem boa vontade - a questão da defesa da democracia e o papel que vem sendo exercido a respeito pelo STF.

Praguejar contra o Supremo - ou quiçá criticá-lo como se fosse um ajuntamento de falsos vestais, a intrometer-se aonde não é chamado - virou o esporte de parcela da sociedade, inclusive da camada mais esclarecida. No jornalismo e nas mesas de bar, entre não formados em Direito, se tornou pauta "analisar" decisões da Corte para as definir como certas ou erradas.

No olho do furacão, de modo muito particular, o Ministro Alexandre de Moraes. Desde que relator do Inquérito que apura ataques e discursos de ódio ao Supremo, e até mesmo depois que o Plenário da Casa aprovou a constitucionalidade do procedimento, o Ministro passou a ser a personificação da vilania para quem entende que a liberdade de expressão, assim como o dinheiro público, aceita desaforos.

Observe-se este exemplo de quase seis meses atrás. Passou a circular na internet um vídeo contendo a seguinte legenda: "Vejam a verdade por trás das cortinas, vejam o que os comunistas das trevas pensam em fazer, vamos viralizar, espalhem. O mesmo discurso do Adolph Hitler". O personagem do vídeo: o Ministro Alexandre de Moraes.

Agora vamos aos fatos O Ministro não proferiu discurso algum expressando como sua essa visão entre aspas. O vídeo viral omitiu deliberadamente o contexto: a fala foi feita a calouros de Direito da Faculdade do Largo do São Francisco da USP e tratou sobre os ataques às democracias que grupos de extrema direita estavam (como estão) a promover em vários países, inclusive no Brasil. A fala completa é do seguinte teor:

"Não demorou muito para uma extrema direita, os extremistas perceberem que as redes sociais eram um caminho para atingir o poder sem precisar passar pelo voto. Ou atingir o poder pelo voto e nunca mais largar esse poder. (...) Ódios que foram surgindo foram sendo capturados por esses extremistas. (...) E depois as famosas fake news. É uma verdadeira lavagem cerebral que é realizada. Isso com método de ataque à democracia. Isso teve método. A partir de estudos, estudos feitos e aprimorados na extrema direita norte-americana, isso teve método para se atacar os três pilares das democracias ocidentais. A partir de cativar, 'vamos cativar o eleitorado e agora vamos corroer a democracia por dentro.' Como corroer a democracia por dentro? Sem um discurso tradicional de golpe, de acabar com a democracia? 'Não. Vamos dizer que a democracia está falida, está desvirtuada, não representa mais os anseios populares e nós, salvadores da pátria, vamos precisar substituir'. Não por outros motivos a palavra liberdade é a mais utilizada pelos extremistas".

Ora, o mesmo contraponto vale no embate com o bilionário Musk, proprietário do X, antigo Twitter. Não se está a corroer a liberdade de expressão ao determinar proibições de hospedagem de conteúdos antidemocráticos e nem responsabilizar por isso quem descumpre a ordens judiciais de remoção. Se está a defender um preceito imaterial muito maior.

Musk não é herói. Nem o Ministro o vilão. Conscientização para quem se dispõe a ouvir talvez seja a saída quando muitos insistem em não ver ou preferem não ver a realidade de que a democracia é uma conquista civilizatória e que a liberdade de expressão se submete a freios e contrapesos, sim, no interesse coletivo.

Se nos EUA, País em que as pessoas são autorizadas, por exemplo, a se armar o quanto desejarem, a questão da expressão do pensamento ("livre mercado de ideias") se encontra em parte controvertida, no Brasil e na Europa ela é pacífica: o direito a tal liberdade, direito constitucionalmente reconhecido, não pode ser utilizado para lesar bens jurídicos também protegidos pela Constituição.

Ao fim e ao cabo, é do que se está a cuidar. Liberdade de expressão não é vale-tudo. Ninguém está acima das leis e da justiça. Plataformas de comunicação internacionais não são imunes à jurisdição dos Países onde mantêm representações. E, sobretudo, o STF não é o suspeito de sempre, nem o assassino da trama.

Gustavo Henrique  de Brito Alves Freire, advogado

 

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