Itamaraty: Deus vomitará os mornos!

Marcar posição clara em favor da democracia significa condenar em alto e bom tom o resultado das eleições proclamado por Caracas.

Publicado em 10/09/2024 às 0:00 | Atualizado em 10/09/2024 às 6:59

É sabido que a função da diplomacia é resolver problemas internacionais através do diálogo. Cautela e paciência se constituem, sem dúvida, em ingredientes fundamentais para que ela possa ser exitosa e, por conseguinte, evitar enfrentamentos armados. Convencer o interlocutor, encontrar elementos de convergência ou sopesar concessões, seguramente, demanda tempo. Assim, atitudes precipitadas não rimam, de modo geral, com boas tomadas de decisões. Entretanto, confabulações por demais prolongadas e sem horizonte razoável de conclusão também não são sãs, podendo gerar desgaste e clima de desconfiança sobre a boa fé dos envolvidos. Isso ficou muito claro, por exemplo, nas infindáveis negociações diplomáticas entre Adolf Hitler e Neville Chamberlain, as quais desembocaram, tristemente, na Segunda Guerra Mundial.

Ora, a recente eleição presidencial ocorrida na Venezuela revela uma reação da diplomacia brasileira que poderia ser qualificada de, no mínimo, hesitante. Apesar dos testemunhos dados por inúmeros observadores internacionais e, também, das simulações elaboradas por instituições de pesquisa - a partir de dados obtidos nas diversas zonas eleitorais da República Bolivariana - terem, celeremente, se firmado indicando fraude, a ausência de censura por parte do Itamaraty surpreende e contrasta com a pronta reprovação da grande maioria de seus parceiros latino-americanos, tais quais a Argentina, o Chile, o Paraguai ou o Uruguai.

O silêncio brasileiro ecoa, dessa forma, como um consentimento. Uma complacência insensata, uma vez que absolutamente desprovida de esteio democrático. A definição minimalista de democracia, proposta por Joseph Schumpeter, por exemplo, aponta as eleições livres e a possibilidade indefectível de alternância de poder como duas condições vitais para qualquer regime político que ambicione se calcar na soberania popular. Nicolás Maduro, no rastro de seu antecessor, Hugo Chávez, não parece, pelas ações de governo que tem perpetrado, se enquadrar na moldura de Chefe de Estado comprometido com a democracia.

É natural que a ideologia possa contribuir para aproximar ou afastar países. Isso tem sido um fenômeno recorrente no cenário internacional. Mas ela não pode se sobrepor aos princípios que fundamentam o Estado de Direito. Autocracias apoiam autocracias. Democracias aclamam democracias. Democracias não respaldam autocracias. Ou, pelo menos, não deveriam respaldar. Vide o Chile que, apesar de possuir, hoje, um governo de esquerda, não hesitou em desaprovar o resultado das eleições anunciado por Caracas.

A indulgência praticada pela diplomacia presidencial de Lula depõe contra o Brasil. Ela soa como cumplicidade que mesmo a Realpolitik, desprovida de princípios éticos e morais, não consegue elucidar. Isso porque a Realpolitik é racional. Ela é movida pela busca do interesse nacional. Mesmo que contrários à democracia. Podendo, por conseguinte, justificar certos atos diplomáticos. Mas qual seria o interesse de Brasília em apoiar Maduro? O que o Brasil pode ganhar com isso? Se há algum benefício, ele não parece muito claro, camuflando-se na mudez do Itamaraty. O silêncio não é inocente. Ele peca por relegar ao segundo plano a questão da democracia.

Evidentemente que, como já ponderado acima, a diplomacia é vocacionada, via de regra, a ser prudente. Ela comumente se inspira no provérbio grego: virtus in medium est. Concepção aristotélica que entende o equilíbrio e a moderação como caminho para a virtude. Embora, em algumas situações, a diplomacia possa igualmente assumir, como é sabido, traços da virtù maquiavélica, mais preocupada com a eficácia política do que com a moralidade. O embaraço, contudo, reside no fato de que, visivelmente, o tratamento brasileiro dado à questão de Maduro, não se encaixa em nenhuma destas duas concepções. Assim como também não se encaixaram, mutatis mutandis, as abordagens adotadas em relação aos conflitos entre Rússia e Ucrânia e entre Hamas e Israel.

O que há, no caso da Venezuela, é uma pseudo-imparcialidade. Morna. Onde a gravidade e despudor da situação urge um gesto franco e resoluto. Quente ou frio. Desprovido de agressividade, mas assertivo e comprometido com os princípios democráticos. Não há diplomacia altiva sem engajamento com tais princípios. Não existe diplomacia ativa calcada em inércia. Não se pode servir a dois senhores: democracia ou compadrio ideológico? A verve profissional do Itamaraty, reconhecidamente de alto calibre e qualidade, parece sucumbir diante da amadora diplomacia presidencial.

O mais insensato, porém, desponta com a recente quebra do silêncio e a inverossímil proposta brasileira de novas eleições. A impropriedade da propositura é, sem dúvida, de monta. Ela é atestada pela sua pronta e veemente rejeição por ambas as partes, cada qual convicta de que o pleito efetuado é válido, somente divergindo sobre a existência ou não de fraude na apuração. Ou seja, o Itamaraty passa do mutismo consentidor ao verbo intransitivo. Aquele que não pede complemento, não reivindica diálogo, não sugere continuidade discursiva, enfim, é anti-diplomático. Assim, a proposta natimorta apenas remete a pretendida moderação brasileira à situação inicial, a saber, a de uma espera infinda e silente das atas oficiais a serem fornecidas por Nicolás Maduro.

A Venezuela detém as maiores reservas de petróleo do mundo e, inegavelmente, é um parceiro relevante para o Brasil. Membro do Mercado Comum do Sul (Mercosul), aumentou sua base econômica e o poder de negociação do bloco. Pátria de Simón Bolívar, pioneiro do processo de descolonização da América Latina, é um Estado precursor da democracia. Não obstante, durante as últimas décadas, a Venezuela adentra lentamente em uma espiral de governos autoritários que têm incontestavelmente desmantelado o tecido social e político do país. Entre as principais consequências, pode-se registrar: a suspensão do Mercosul, em 2017, através do Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático, e o expressivo êxodo migratório rumo aos países vizinhos - inclusive o Brasil.

Ora, esta trágica realidade não pode ser maquiada em nome de uma conivência ideológica sem qualquer alicerce democrático. O povo venezuelano clama por mudança e a diplomacia brasileira, dentro de sua longeva tradição grociana, não pode cambalear. Marcar posição clara em favor da democracia significa condenar em alto e bom tom o resultado das eleições proclamado por Caracas.

Marcelo de Almeida Medeiros , professor titular de Política Internacional Comparada do Departamento de Ciência Política da UFPE/E-mail: marcelo.medeiros@ufpe.br

 

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