A ideia da anistia e o 8 de janeiro de 2023
Nem a democracia é conceito fluido, mas uma conquista inegociável, assim como sua defesa precisa ser, nem conspirar é mera contravenção.
Com previsão no artigo 5º, da Constituição, a anistia é sinônimo de esquecimento. Objetiva fatos (e não pessoas) definidos como crimes, de regra, políticos, militares ou eleitorais, excluindo-se normalmente os crimes comuns. É, no mais, causa que extingue a punibilidade. Hoje são dois os seus sentidos: (1º) o de reparação e reconhecimento, na perspectiva das vítimas da ditadura; e (2º) o de rechaço a qualquer forma de conciliação ou negociação em torno de possíveis punições a crimes graves, ou seja, guarda conotação, mesmo, de perdão.
Do grego "amnistia", vem a ser um mecanismo despenalizador, que se projeta sobre os efeitos advindos da prática de determinados tipos delituosos. O que se promove é um apagamento de ilícitos já julgados, para que sejam relevados. A ficha criminal é zerada. A anistia, enfim, é um benefício legal.
No idos de 594 a.C., na cidade-estado de Atenas, havia o ato de clemência e perdão a cidadãos perseguidos pelos regimes tirânicos anteriores, que eram reintegrados à sociedade, excetuados os condenados por traição e homicídio. Na Revolução Francesa, a Constituição de 1791 previa uma diferenciação entre graça, com características de indulto, atribuição privativa do Presidente da República, e anistia, doravante atribuição do Poder Legislativo.
No Brasil, os primórdios remontam ao século 17, quando da expulsão dos holandeses de Pernambuco e na Revolta de Beckman, no Maranhão. A anistia aparecia na condição de ato do Rei de Portugal, imbuído de caráter marcantemente conciliatório. No processo subsequente de emancipação política, o termo passou a figurar no ordenamento constitucional com a Carta de 1824 na qualidade de prerrogativa exclusiva do Imperador. Já no século 20, na era republicana, a primeira anistia coube à pena do Presidente Prudente de Morais em 1895, que a outorgou em favor de Oficiais da Marinha e do Exército envolvidos nos primeiros embates pela abolição da monarquia.
Em looping para o ano de 1979, em plena ditadura, chega-se à Lei nº 6.683. Seu texto contemplou os até então "subversivos" do regime, ficando de afora os "terroristas", merecendo destaque o fato de que, durante as discussões legislativas, prevaleceu a ideia de uma anistia "ampla, geral e irrestrita", sem, por conseguinte, as limitações do projeto do Governo. Nessa direção, em que pese não citasse literalmente os agentes estatais envolvidos em torturas e execuções de opositores, o dispositivo legal previa extensão aos crimes conexos, e assim a ideia vingou, tragicamente. O texto derradeiro continha 305 emendas
e foi aprovado depois de nove horas de discussões e votações em plenário, com 206 votos a favor e 201 contrários.
Quando se faz o recorte para o domingo 8/1/2023, a pergunta que se impõe, então, é a seguinte: em que exatamente o contexto histórico e social prévio aproveita os que, de forma direta ou indireta, participaram daquela infâmia? A resposta: em nada.
É simples. Quem atua pela ruptura democrática, assim como quem a incita, ou financia e organiza movimentação para tal propósito, o faz por que quer. Não por estar sendo perseguido politicamente. O lugar do conspirador, assim como do executor, não é o do perseguido político, mas outro; pertence, nitidamente, à legislação penal.
Cirúrgica, assim, a síntese do ex-Ministro do STF Celso de Mello ouvido pelo site Migalhas (08/01/2024): "A data [08/01/2023] representa, por efeito da invasão multitudinária e criminosa nela perpetrada contra os Poderes do Estado, o gesto indigno, desprezível e estigmatizante daqueles que, agindo como delinquentes vulneradores da ordem constitucional, não hesitaram em dessacralizar os símbolos majestosos da República e do Estado Democrático de Direito".
Portanto, vale sempre repetir. Nem a democracia é conceito fluido, mas uma conquista inegociável, assim como sua defesa também precisa ser, nem é mera contravenção conspirar ou atentar contra algo tão sagrado e tão básico. Deixo a conclusão para o mestre Rui Barbosa: "Se os fatos que dão origem à anistia constituem um crime, essa medida não pode ter o caráter alto, reparador e benfazejo que lhe pertence". Que não seja - oxalá - preciso desenhar.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado