O valor político do orçamento
O orçamento constitui parte integrante da democracia política e instrumento da correta alocação dos recursos financeiros para uma sociedade próspera
No mundo real, orçamento é um conceito simples. Receita, gasto, equilíbrio, sobra ou falta. Estes elementos assumem enorme complexidade na medida em que entra em cena o Estado, como instrumento da organização política a partir do exercício monopólio da força em benefício da paz social. A consequência da percepção hobbesiana foi a luta imemorial da liberdade contra a opressão sob os reiterados episódios de abuso de poder e sua ampliação sobre territórios e gentes.
Por sua vez, a empreitada absolutista somente era possível mediante o financiamento extorsivo, expresso no orçamento real, consumido pelas guerras de conquista, a ostentação e o desperdício da corte à custa das receitas extraídas do baronato, do clero e, cruelmente, da miséria dos servos da gleba.
A extorsão estava registrada no documento, meramente contábil – o orçamento – que passou para história como valor político pioneiro para a proteção à cidadania, Item (ou artigo 12) da Carta Magna (15 de junho de 1215), em tradução livre: “Não lançaremos taxas ou tributos, sem o consentimento do conselho geral do reino (commune concilium regni) a não ser para resgate da nossa pessoa, armar cavaleiro o nosso filho mais velho e para celebrar, mais uma única vez, o casamento da nossa filha mais velha: e esses tributos não excederão limites razoáveis. De igual maneira, se procederá quanto aos impostos da cidade de Londres”.
A partir de então, o orçamento público passou a refletir a natureza do poder do Estado em conformidade com desenho político-ideológico e as circunstâncias históricas que lhe dão suporte. Da mesma forma, certificou como argumento político e socioeconômico, a extorsão fiscal, gatilho das lutas libertárias entre governantes e governados, colonizadores e colonizados.
Dentro de uma perspectiva histórica, os orçamentos foram incorporados ao constitucionalismo, ponto de ruptura entre o antigo regime, que incorporou ao estado moderno o ideal das liberdades do cidadão e o governo das leis e não dos homens; da racionalidade do direito e não do poder da força.
Em princípio, o orçamento constitui parte integrante da democracia política e instrumento da correta alocação dos recursos financeiros na construção de uma sociedade próspera e justa.
No caso brasileiro, desde os “orçamentos rabilongos” da Velha República aos dias atuais, o processo orçamentário tem sofrido os efeitos de uma cultura política permeada pelos vícios do patrimonialismo e do clientelismo, agravados pelas rupturas autoritárias do estado novo, do regime militar e os momentos críticos para gestão orçamentária, devastada por uma inflação crônica e o descontrole estrutural das contas públicas.
A despeito da enormidade dos desafios, a redemocratização com a Constituição de 1988 e a estabilização da moeda com o Plano Real, foram caminhos que possibilitaram o enfrentamento de graves adversidades, inclusive uma superposição de crises que ameaçou a resistência da República Brasileira.
Por decorrência da trajetória política, vivi uma diversificada experiência na gestão orçamentária ao exercer mandatos nos Poderes Executivo e Legislativo e nas três esferas da Federação Brasileira. E sigo observando.
Descontado o período do governo militar em que o Orçamento “faz de conta” entrava e saia do Legislativo sem alterar uma vírgula, registrei algumas constatações: tudo é prioritário, máxima que atesta que nada é prioritário; as demandas colocam frente a frente a utopia da abundância (receita) com severa realidade da escassez (despesa); as demandas corporativas superam as demandas dos interesses gerais, porém, órfãos; o aumento de arrecadação é sempre uma solução simples, burra e injusta: pune o mais pobre; receita vinculada transforma a prioridade que é contingente numa eterna necessidade; equilíbrio orçamentário é uma profanação neoliberal; contingenciamento é o caixa mentindo para a rubrica orçamentária; a Lei Orçamentaria é uma norma híbrida: parte é autorizativa e parte impositiva, ganhou o ouro olímpico ao destronar o inacreditável orçamento secreto.
Para não dizer que não falei de números, destaco um dado assustador: num orçamento de R$ 5,8 trilhões o governo só pode gastar R$ 11,7 bilhões. O país segue literalmente sob o fogo cerrado das inúmeras dificuldades e disfuncionalidades do sistema político que tem no Orçamento Público uma espécie de precário suporte da fragmentação política e, ao mesmo tempo, o “argumento” para segurar o que restou do “presidencialismo de coalizão” em nome da governabilidade.
Para finalizar cabe uma breve consideração sobre o volume das emendas parlamentares que apresentou uma evolução exponencial de R$ 9, 66 bilhões em 2015, para R$ 44,67 bilhões em 2024, sendo R$ 25,07 bilhões de emendas individuais, R$ 11,05 bilhões de emendas de comissões e 8,56 bilhões de bancadas estaduais.
Não tenho os pendores ingênuos da “velhinha de Taubaté, personagem de humor criada por Luís Fernando Veríssimo, durante o governo do General João Figueredo, famosa por ser a última pessoa no Brasil que ainda acreditava no governo, por isso acredito de verdade que, após a decisão do Ministro Flavio Dino sobre a inconstitucionalidade do caráter impositivo das emendas e a nota conjunta dos Poderes sobre a execução das propostas, inverta-se o jogo: que o orçamento seja real para a maioria, os eleitores, e reprovável benesse para uma privilegiada minoria de parlamentares.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco