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Os "OUTROS" do freireanismo

É com o educador Paulo Freire que , ao longo de sua produção pedagógica, articula educação e liberdade que, aqui, ganha a marca de educação popular.

Publicado em 24/09/2024 às 0:00 | Atualizado em 24/09/2024 às 9:33

Essa semana que passou foi, em muitos lugares do mundo, dedicada à passagem dos 103 anos do nascimento do educador Paulo Freire, o pernambucano que procurou, ao longo de sua produção pedagógica, articular educação e liberdade no interior de uma prática que, embora mais antiga, ganhará entre nós um outro perfil: a chamada EDUCAÇÃO POPULAR.

, diria Freire, no espírito do oprimido. Assim o "ser oprimido" é esta estranha condição de trazer um Outro dentro de si mesmo e que ocupa os espaços de meu pensamento, sentimento, fala, visão... impedindo-me de assumir minha autenticidade, expressa naquela proposição freireana do "poder dizer a sua própria palavra". Isto significa que a ação libertadora que devo inicialmente exercer, não é aquela em que eu elimino um agente externo, opressor e visível, mas aquela que incide sobre mim mesmo. Todo o problema, aqui, está em se obter esta visibilidade interior. Esta transparência sobre o próprio Eu (um "Conhece-te a ti mesmo", ou melhor, "Reconhece em ti mesmo teu opressor") é uma das mais antigas ambições da filosofia e que coloca um problema medonho: ser, ao mesmo tempo, sujeito da observação e objeto a ser observado - a quimera da síntese entre sujeito e predicado do hegelianismo. Como se dispuséssemos de um EU cognoscente que transcenderia este outro EU cognoscível (o que hospeda opressores). É isso que chamamos de metafísica da subjetividade.

Grande parte do problema reside nessa "visão do interior": quem pode vê-lo? Como e por que uns conseguem fazê-lo e o "oprimido" não? Isso na verdade, remete-nos à Alegoria da Caverna. Não repetirei, aqui, os detalhes da Alegoria platônica - sobejamente conhecida - farei apenas uma pergunta: como é que um daqueles prisioneiros consegue libertar-se sozinho? E, além do mais, sem nem sequer comunicar aos seus companheiros como proceder para libertarem-se também! É aqui, nesta libertação individual que surge um dos "OUTROS" do freireanismo. Sim, porque o oprimido do freireanismo não tem só um OUTRO (o opressor), ele tem um segundo OUTRO: o próprio educador popular! Se o primeiro OUTRO é aquele que "hospedo" e que retira ou prejudica minha autenticidade, minha "própria palavra" e que precisa ser identificado e expulso para que eu possa autenticar minha fala, que até então não era minha (uma verdadeira ventriloquia ideológica), eis que aparece um "Outro" do oprimido na figura do próprio... EDUCADOR POPULAR!

Claro que há profundas e inconciliáveis diferenças entre essas duas "outridades", o opressor e o educador popular: o primeiro, claro, oprime, quer dizer, impede processos de autodeterminação e autorrealização e mantém o oprimido na condição de OBJETO; enquanto que o segundo tenta supostamente promover processos de libertação, fazendo o oprimido transitar para a condição de SUJEITO. Com o primeiro não há diálogo, com o segundo sim. No primeiro caso, para o opressor o OPRIMIDO-OBJETO não tem forma: é como a massa, campo de manipulação com vistas ao conformismo político e ao fatalismo. Mas, de que imagem de homem (e, sobretudo, de HOMEM LIVRE) dispõe o educador popular para orientar seu processo pedagógico e sua relação com o oprimido? A do homem do Humanismo clássico: crítico, autônomo, consciente, racional, livre, ético. Lembro ainda que esta relação educador-educando é marcada por uma sutil assimetria: se a interioridade (manipulada) não é visível para o oprimido, ela o é para o educador crítico que, deste modo, sabe sobre a consciência do outro o que ele mesmo ignora (sua "ingenuidade"). Habita, no entanto, aqui, um mistério insondável desta relação, e que remete à velha caverna platônica: como se constituem tais consciências críticas que, mesmo envolvidas em formas de dominação social e de alienação, conseguem livrar-se de seus grilhões e enxergar sua interioridade (supostamente também infectada de ilusões ideológicas) com olhos (críticos) que sua própria educação não forneceu (ou vocês acham que Paulo Freire estudou numa escola "freireana", "conscientizadora" e "dialogal" para tornar-se o educador "crítico" que ele foi?). O mistério da personagem platônica que se liberta sozinha permanece! O problema é que, quando ele volta pra Caverna, ele acha que sabe sobre a realidade e sobre a consciência dos outros aquilo que esses "outros" sempre ignoram. Eis a origem "infame" (como diria J.L.Borges) do...pedagógico!

Flávio Brayner (UFPE e UFRPE)

 

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