Ainda dá para salvar o processo político
Deveria haver um filtro legal de admissibilidade para concorrer. Uma prova de natureza eliminatória, composta, nos moldes dos concursos públicos.
Pertence a Caio Fernando Abreu o genial pensamento: "A calma, o equilíbrio, as palavras ditas lentamente, como se escolhesse. Raramente um gesto, um tom mais espontâneo. Tão bom ator que ninguém percebe minha péssima atuação".
Partindo-se daí, no instante em que se tenta entender o incidente da cadeirada desferida por um candidato contra outro no debate para a Prefeitura do maior colégio eleitoral do País, e seus bastidores, resvala-se para dito pensamento.
É desolador constatar a que ponto desceu a classe política, filiando todo tipo de personagem, e, por arrastamento, o eleitorado que tolera uma ambiência tão disfuncional. Da mesma forma, é cortante o silêncio, quando não revoltante o apoio, a candidaturas supostamente antissistema, protagonizadas por figuras inusitadas, jogadas ao eleitor como tábuas de salvação, deixando em último plano os problemas gerais das pessoas.
Deveria haver um filtro legal de admissibilidade para concorrer. Uma prova de natureza eliminatória, composta, inclusive, por uma etapa de arguição oral, nos moldes dos concursos públicos. O programa de estudos seria complementado, também em caráter eliminatório, por um teste psicotécnico e quem sabe até por um teste de Rorschach. O candidato, se vencesse o peneirão, compareceria em outra fase e teria que dissertar sobre questões (e soluções) ligadas aos temas da educação, da saúde, da habitação, do emprego, da mobilidade, entre outros. Consequentemente, ficando aquém do ponto de corte, cairia fora da disputa.
Talvez aí absurdos não mais se repetissem e somente os de fato detentores de boas ideias sobrariam. Se a meta é aproximar a população do processo político, hoje o tiro vem saindo pela culatra. O ceticismo ganha corpo entre os que votam por opinião e o voto de protesto se perde em candidaturas esdrúxulas, que primam por um coquetel assassino de teorias conspiratórias e desinformação, a catapultar nas pesquisas pretensões de zero respeitabilidade. O fundo do poço acaba recalculado eleição após eleição. É trágico. É triste. É uma vergonha.
E que não sejam olvidadas as candidaturas extremistas, assinaladas por discursos de ódio e agendas divisivas, o que torna urgente o despertar da consciência crítica da população para o fato de que nada disso é liberdade de expressão, e, pois, também não deveria ter espaço.
Se é inadmissível contemporizar com a violência da reação exorbitante ainda que a uma injusta provocação, também é inadmissível contemporizar com a candidatura cuja metodologia tumultuária produz, nada obstante, um padrão de passividade que anestesia da Justiça à grande imprensa aos mediadores dos debates aos demais candidatos, mesmo que seja uma passividade involuntária. Violência nunca é a resposta, nem o incitador contumaz é a vítima.
O ambiente de difícil controlabilidade das redes sociais tornou-se a antítese do que precisa ser a arte da política: ao invés do confrontar de ideias, um ringue de boxe. No lugar do argumento, o ataque. Hoje, note-se bem, a palavra "cadeirada" virou trending topic. Suplantou as discussões mais importantes. E ninguém reage para libertar a racionalidade da masmorra.
Perfeito, por isso, o trecho final do editorial do Jornal do Oeste do dia 17 de setembro ("A cadeirada da política"), quando afirma: "Enquanto os candidatos se engalfinham -
literalmente - as propostas, as ideias e os projetos ficaram soterrados sob os escombros do debate que virou pancadaria. Quem se importa com as reais soluções para a mobilidade urbana, educação e saúde, quando se pode discutir a força da cadeirada? A cena serviu como um lembrete, irônico, claro, de como a política brasileira muitas vezes se perde em espetáculos teatrais que mais parecem sair de um roteiro de comédia pastelão".
Das duas, uma: ou se enrijece o rigorismo do processo político, livrando-o do rótulo de comédia pastelão, resgatando sua autoridade, e, junto a isso, a sociedade acorda para a própria cota de responsabilidade, ou vai ser da cadeirada para pior e invadirá a abstenção. Sairemos, em suma, todos perdedores e a democracia morta por asfixia. A decisão a ser tomada é essa; as condições estão colocadas; e do céu o que cai é chuva.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado