O apagão de São Paulo e agências reguladoras

Agências reguladoras autônomas e tecnicamente competentes serão cada vez mais indispensáveis diante dos eventos climáticos extremos ....

Publicado em 23/10/2024 às 0:00 | Atualizado em 23/10/2024 às 11:08

Como era previsível, o apagão em São Paulo alimentou a crítica corrente da velha esquerda à concessão privada dos serviços públicos. Gleisi Hoffmann, presidente do PT, afirmou que a "crise da ENEL e o descaso da prefeitura refletem a falência do modelo privatizado, que prioriza acionistas e abandona a população". Curiosamente, o Prefeito candidato à reeleição, Ricardo Nunes, e o governador Tarcísio Freitas que o apoia, grandes defensores das privatizações, concentraram os ataques precisamente na ENEL concessionária da distribuição de energia elétrica, pedindo a caducidade do contrato de concessão. Seja para não ser contaminado eleitoralmente pela crise a dez dias do pleito, seja para salvar o modelo de privatização que estaria sendo comprometido pelo fracasso ou irresponsabilidade de uma concessionaria.

O Presidente da República e o seu Ministro de Minas e Energia não questionaram a concessão privada da distribuição de energia elétrica em São Paulo, mas aproveitaram a crise para atacar a ANEEL - agência reguladora do setor elétrico - que não teria fiscalizado com rigor o desempenho e a gestão da ENEL. Neste caso, Lula prefere poupar a empresa privada concessionária dos serviços, na direção contrária do discurso petista (e lulista) contra a privatização. Ao mesmo tempo em que responsabiliza a ANEEL pela crise de energia de São Paulo, o presidente Lula reforça sua proposta de coincidência dos mandatos dos diretores da agência com o mandato presidencial. Que, em última instância, permite a politização nefasta das agências reguladoras. O que fica evidente quando o ministro Alexandre Silveira chama a agência de "ANEEL bolsonarista" porque a sua diretoria foi empossada no governo de Jair Bolsonaro após a aprovação do Senado Federal (ignorando a competência técnica dos dirretores). Pelo visto, Silveira (falando pelo presidente) gostaria de ter uma ANEEL lulista, como se coubesse às agências executar as políticas do governo.

No fundo, a longa e ampla interrupção da energia elétrica na cidade reforça o incômodo do presidente com a autonomia das agências reguladoras. Da mesma forma que trata o Banco Central, ele gostaria que todas as instituições do Estado que, por sua natureza, devem ser autônomas, fossem subordinadas às diretrizes e decisões do presidente da República. As agências reguladoras foram criadas para conciliar a gestão de um monopólio natural, como a distribuição de energia elétrica, e os interesses dos consumidores, assegurando estabilidade e confiança jurídica dos contratos, equilíbrio delicado entre a concessionária e sua capacidade de investimento, de um lado, os custos do serviço prestado à sociedade. Decidir, politicamente, baixar as tarifas de eletricidade a um nível incompatível com os contratos - o que todo presidente gostaria para aumentar a sua popularidade - cria insegurança jurídica e podem inviabilizar o negócio e comprometer os investimentos, o que termina sendo prejudicial ao consumidor final.

Contaminado pelo clima eleitoral, o calor do debate sobre a crise de energia gera um questionamento do mérito das concessões privadas de serviços públicos e do modelo de regulação externa pelo Estado (e não governo), com a tentativa de politização das agências reguladoras e submissão ao governo de plantão. As concessões privadas, é necessário insistir, são um grande sucesso, principalmente quando se consideram as dificuldades gerenciais das antigas estatais (pesadas e permeáveis aos governos do momento) e as restrições financeiras que inibiam os investimentos. Quase toda a rede de distribuição de energia elétrica no Brasil é gerida por uma concessão privada que tem sido capaz de atender à demanda crescente de eletricidade das cidades e do meio rural, resultado de contratos e compromissos assumidos com a ANEEL. Difícil imaginar que as antigas estatais de distribuição de energia elétrica, mesmo as que eram bem geridas, estivessem qualificadas e capitalizadas para ter um desempenho melhor que o da ENEL diante de eventos extremos que se abateram sobre a Região Metropolitana de São Paulo.

Evidente que é inaceitável a lentidão da empresa na recuperação do atendimento da eletricidade à população de São Paulo e precisa ser investigado o desempenho da ENEL à luz dos compromissos assumidos no contrato de concessão. Se for comprovada a leniência e a incapacidade gerencial e financeira da concessionária, não cumprimento das metas de investimento, deve ser tomada decisão de suspensão do contrato de concessão e, neste caso, a abertura de nova licitação. Para isso existe uma agência reguladora tecnicamente qualificada e independente do governo do momento, para exercer a fiscalização e orientar decisões que podem levar à intervenção nas empresas que não cumpram os contratos. A ANEEL pode ter falhado neste caso? E não são, evidentemente, totalmente impermeáveis aos lobbies e às pressões políticas. Para minimizar as falhas de impermeabilidade é que existem regras de funcionamento das agências reguladoras, entre as quais a competência técnica reconhecida dos seus diretores, que não podem ter vínculos com a empresa regulada ou com sindicato, além do seu mandato não coincidir com o do presidente da República. Claro, e é necessário avaliar e definir responsabilidades. Entretanto, apostar na fragilização institucional e na politização das instituições de regulação, procurando subjugá-las ao governo de plantão - a ANEEL de Bolsonaro e ANEEL de Lula - representa um desestímulo ao investimento de capital privado em projetos de infraestrutura e na concessão de serviços públicos. E como, sabidamente, os governos não têm capacidade de investimento (e baixa eficiência), a qualidade de vida das cidades depende de investimentos privados para prevenção diante dos violentos temporais que devem se intensificar no futuro. Agências reguladoras autônomas e tecnicamente competentes serão cada vez mais indispensáveis diante dos eventos climáticos extremos que o mundo e o Brasil já estão enfrentando.

Ter elevado conceito no campo de especialidade dos cargos para os quais serão nomeados

Não ser acionista nem administrador de empresa regulada

Não integrar sindicatos ou associações atuantes no correspondente setor

Sérgio C Buarque, economista

 

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