A disfuncionalidade da democracia brasileira
No fundo, porém, é irrelevante se o governo é de direita ou de esquerda. Ou melhor, é relevante para quem defende as respectivas posições
Os homens de bem se disponibilizam para dirigir o Estado, porque receiam que os malfeitores se apropriem do poder. É com isso que temos que nos preocupar hoje. A democracia brasileira está disfuncional. Nenhum problema em relação ao sistema de governo escolhido. Não há no horizonte sistema melhor. Contudo, mesmo nas visões utópicas, em que a perfeição se coloca como objetivo, a exemplo da cidade liderada por filósofos (Platão, A República), podem surgir problemas. O segredo existe em tratá-los na mesma perspectiva da fundação, corrigindo-os a tempo.
Não é importante saber como chegamos até aqui, da redemocratização até as últimas eleições – importante é sair de onde estamos -, que consagraram um pensamento aparentemente majoritário de direita no país. Talvez de centro.
No fundo, porém, é irrelevante se o governo é de direita ou de esquerda. Ou melhor, é relevante para quem defende as respectivas posições, mas, sob a ótica da convivência democrática, é natural que existam revezamentos de ideologias no poder, desde que os fundamentos basilares do Estado sejam respeitados e se alcance um mínimo de continuidade das políticas públicas. O grande problema é a radicalização, a extrema-esquerda ou a extrema-direita, já que a História demonstra que essas ideologias são autoritárias e contra os princípios democráticos e do Estado de Direito.
No encadeamento dos fatos que nos trouxeram até aqui, na verdade, basta saber que sofremos diversos acidentes de percurso, desde a morte de Tancredo – à qual se seguiu o decisivo momento da Constituinte e seus relevantes desafios de construção de uma sociedade mais justa -, passando pelo impeachment de um Presidente e de uma Presidenta em curto espaço de tempo, até a insatisfação da população com os serviços de Estado, sinal de que a democracia não está entregando, a qual desaguou nas manifestações de 2013 e na contestação ao resultado das urnas por Aécio, o verdadeiro ovo da serpente. Esses acidentes se somam à falta de integridade de muitos que passaram e ainda passam pelo poder.
O fato é que a democracia não funciona se não tivermos homens de bem. Voltando a Platão: os homens de bem se disponibilizam para dirigir o Estado, porque receiam que os malfeitores se apropriem do poder. É com essa realidade que temos que nos preocupar hoje. Indispensável despertar os homens de bem para a política.
Para além do caráter dos dirigentes (homens de bem), cuja excelência depende fundamentalmente da escolha dos cidadãos, escolha que, no caso do Brasil, continua precária em face do baixo nível educacional, existe o próprio funcionamento das instituições. Não é à-toa que a Constituição estabelece o princípio da separação dos poderes, atuando de forma independente, mas harmônica. Esse princípio é fundamental na república democrática. No panorama atual, isso não está acontecendo, e as distorções são muito graves. Começa pelo patrimonialismo da classe dominante. A ela interessa a captura dos políticos para manutenção de suas estruturas econômicas, dando-lhes em troca dinheiro.
Não é outra a razão de termos, no orçamento federal, 58 bilhões de reais destinados a emendas parlamentares, recursos que, em última análise, os congressistas usam a seu critério e prazer. Executivo e Legislativo são ambos reféns do patrimonialismo. Por cima, a relação entre Executivo e Legislativo está completamente deturpada.
Parece-me, contudo, que deturpação de igual monta está acontecendo no funcionamento do Judiciário. A atuação do Supremo foi essencial na defesa da democracia e da própria sobrevivência da população frente à pandemia, quando a liderança de um louco autoritário, negacionista e despreparado, permitiu milhares de mortes. Mas já passou da hora de se colocar o trem nos trilhos. A pior ditadura é a do Judiciário, que detém a última palavra. A eternização do Inquérito 4781 e os indícios de que o Ministro Relator está deleitando-se, e excedendo-se, com o extremo poder que dele resulta, ressalvados todos os benefícios que ele trouxe à sociedade brasileira, não é saudável, e configura um claro sinal de disfuncionalidade da nossa democracia.
João Humberto Martorelli, advogado