Mutações no mundo

Exploração sem fim dos recursos naturais, busca de lucro a qualquer preço, chegando ao ponto de negligenciar os resultados de testes de HIV...

Publicado em 01/11/2024 às 0:00

Fogo, quanta inundação, ventania, turbulência no ar, poluição. Quantas catástrofes que, não sei por que, chamam de naturais. Chuva aqui, seca acolá. Vírus novos, um super fungo, bactérias multirresistentes fazendo lembrar a dureza da vida sem antibióticos. Quantas mudanças no comportamento humano, dissonância cognitiva, mentiras, política de ódio ameaçando. Insensatez, vaidade, egoísmo, exibicionismo, ganância, fanatismo, guerras sacudindo o mundo. Sede de poder para oprimir e não para proteger as pessoas.

Exploração sem fim dos recursos naturais, busca de lucro a qualquer preço, chegando ao ponto de negligenciar os resultados de testes de HIV, ferindo os mais elementares princípios de dignidade e respeito humanos. Propaganda liberada para venda de venenos comestíveis rotulados como alimentos, sem se importar com o mal que causam à saúde das pessoas.

Nesse cenário, não é surpresa que haja aumento do número de casos de neoplasias malignas. Há décadas observa-se aumento de alguns tipos de câncer e, mais recentemente, aumento significativo de casos precoces. Os dados mostram claramente que a incidência de câncer em pessoas mais jovens (abaixo dos 50 anos), está aumentando. Entre 1990 e 2019, 79.1% a mais.

A atenção dos analistas se volta para o estilo de vida e exposições ambientais ocorridas desde então.
Existem estudos em andamento, mas não há muito estímulo para a longa e complexa pesquisa visando demonstrar com precisão os motivos para o aumento do câncer precoce. Pode ser necessário muito tempo e o pesquisador sabe que poderá não chegar a uma conclusão segura. As pesquisas visando entender e eventualmente prevenir o câncer precoce não recebem os mesmos recursos que são destinados ao desenvolvimento de novos tratamentos para a doença já instalada. O resultado é uma profusão de novas opções terapêuticas com resultados impressionantes e preços mais ainda, uma situação que, paradoxalmente, beira o crime contra a humanidade ao promover a divisão entre os que conseguem pagar pela cura e os que irão morrer mesmo.

Na reunião anual da Sociedade Europeia de Oncologia Médica (ESMO / 2024) o assunto foi debatido, salientando que o câncer em pessoas mais jovens é “uma epidemia que não pode mais ser ignorada”, que é “a ponta de um iceberg porque o aumento nos jovens é acompanhada de aumento também nos mais idosos”, que “o aumento de tumores gastrointestinais ligados à obesidade salientam a importância de estudar os hábitos de vida”, que “o entendimento dos motivos exatos não é possível no momento”, sugerindo avaliar as exposições precoces potencialmente perigosas que podem estar implicadas. Especula-se que as células do corpo estariam submetidas a maiores danos desde cedo, tendo como resultado o câncer também mais cedo. Dieta não saudável, excesso de peso, sedentarismo desde a infância, são analisados.

Existe uma certa perplexidade enquanto os casos aumentam, com impacto ainda maior para os pacientes e suas famílias por acontecerem no início da vida, fugindo da regra natural e escapando dos programas voltados para a prevenção e diagnóstico precoce. A indicação para busca ativa da doença também mais precocemente, está em discussão.

Enquanto isso, intuitivamente, cabe a reflexão sobre o tipo de alimentação que estamos oferecendo à nossas crianças, sobre as árvores derrubadas e queimadas, sobre a vida estacionada diante de telas e a obesidade, sobre o desamor, sobre o calendário vacinal que previne câncer de fígado (vírus B de hepatite) e colo de útero (HPV), sobre a prevenção do HIV e cuidados com a exposição ao sol e à bebida alcoólica, relacionados com o desenvolvimento da doença.

Até os corais no fundo do mar estão perdendo a cor e morrendo. Ficam pálidos porque a água aquecida mata as algas que os alimentam. Calor e palidez anunciam a morte precoce.

Enquanto isso, há os que se comportam como se o DNA da terra aguentasse desaforo. Limpam os campos com fogo, secam as nascentes e afluentes dos rios (no São Francisco aproximadamente 2/3 já morreram) e depois reclamam. Além de câncer, as mutações adoecem os humanos transformados em seguidores e influenciados. Com atrofia cerebral acatam as opiniões, o estilo de vida e posições políticas de quem seguem, sem crítica. Idolatram futilidades e até criminosos são reverenciados. As multidões acometidas são obedientes às pregações fanáticas, são vulneráveis às mentiras deslavadas, sem autocrítica, como se a vida fosse uma brincadeira de pastoril azul ou encarnado.

E assim caminha a humanidade, adoecendo na flor da idade e fingindo felicidade nas redes sociais.

Sérgio Gondim, médico

Tags

Autor