Mutações no mundo
Exploração sem fim dos recursos naturais, busca de lucro a qualquer preço, chegando ao ponto de negligenciar os resultados de testes de HIV...
Fogo, quanta inundação, ventania, turbulência no ar, poluição. Quantas catástrofes que, não sei por que, chamam de naturais. Chuva aqui, seca acolá. Vírus novos, um super fungo, bactérias multirresistentes fazendo lembrar a dureza da vida sem antibióticos. Quantas mudanças no comportamento humano, dissonância cognitiva, mentiras, política de ódio ameaçando. Insensatez, vaidade, egoísmo, exibicionismo, ganância, fanatismo, guerras sacudindo o mundo. Sede de poder para oprimir e não para proteger as pessoas.
Exploração sem fim dos recursos naturais, busca de lucro a qualquer preço, chegando ao ponto de negligenciar os resultados de testes de HIV, ferindo os mais elementares princípios de dignidade e respeito humanos. Propaganda liberada para venda de venenos comestíveis rotulados como alimentos, sem se importar com o mal que causam à saúde das pessoas.
Nesse cenário, não é surpresa que haja aumento do número de casos de neoplasias malignas. Há décadas observa-se aumento de alguns tipos de câncer e, mais recentemente, aumento significativo de casos precoces. Os dados mostram claramente que a incidência de câncer em pessoas mais jovens (abaixo dos 50 anos), está aumentando. Entre 1990 e 2019, 79.1% a mais.
A atenção dos analistas se volta para o estilo de vida e exposições ambientais ocorridas desde então.
Existem estudos em andamento, mas não há muito estímulo para a longa e complexa pesquisa visando demonstrar com precisão os motivos para o aumento do câncer precoce. Pode ser necessário muito tempo e o pesquisador sabe que poderá não chegar a uma conclusão segura. As pesquisas visando entender e eventualmente prevenir o câncer precoce não recebem os mesmos recursos que são destinados ao desenvolvimento de novos tratamentos para a doença já instalada. O resultado é uma profusão de novas opções terapêuticas com resultados impressionantes e preços mais ainda, uma situação que, paradoxalmente, beira o crime contra a humanidade ao promover a divisão entre os que conseguem pagar pela cura e os que irão morrer mesmo.
Na reunião anual da Sociedade Europeia de Oncologia Médica (ESMO / 2024) o assunto foi debatido, salientando que o câncer em pessoas mais jovens é “uma epidemia que não pode mais ser ignorada”, que é “a ponta de um iceberg porque o aumento nos jovens é acompanhada de aumento também nos mais idosos”, que “o aumento de tumores gastrointestinais ligados à obesidade salientam a importância de estudar os hábitos de vida”, que “o entendimento dos motivos exatos não é possível no momento”, sugerindo avaliar as exposições precoces potencialmente perigosas que podem estar implicadas. Especula-se que as células do corpo estariam submetidas a maiores danos desde cedo, tendo como resultado o câncer também mais cedo. Dieta não saudável, excesso de peso, sedentarismo desde a infância, são analisados.
Existe uma certa perplexidade enquanto os casos aumentam, com impacto ainda maior para os pacientes e suas famílias por acontecerem no início da vida, fugindo da regra natural e escapando dos programas voltados para a prevenção e diagnóstico precoce. A indicação para busca ativa da doença também mais precocemente, está em discussão.
Enquanto isso, intuitivamente, cabe a reflexão sobre o tipo de alimentação que estamos oferecendo à nossas crianças, sobre as árvores derrubadas e queimadas, sobre a vida estacionada diante de telas e a obesidade, sobre o desamor, sobre o calendário vacinal que previne câncer de fígado (vírus B de hepatite) e colo de útero (HPV), sobre a prevenção do HIV e cuidados com a exposição ao sol e à bebida alcoólica, relacionados com o desenvolvimento da doença.
Até os corais no fundo do mar estão perdendo a cor e morrendo. Ficam pálidos porque a água aquecida mata as algas que os alimentam. Calor e palidez anunciam a morte precoce.
Enquanto isso, há os que se comportam como se o DNA da terra aguentasse desaforo. Limpam os campos com fogo, secam as nascentes e afluentes dos rios (no São Francisco aproximadamente 2/3 já morreram) e depois reclamam. Além de câncer, as mutações adoecem os humanos transformados em seguidores e influenciados. Com atrofia cerebral acatam as opiniões, o estilo de vida e posições políticas de quem seguem, sem crítica. Idolatram futilidades e até criminosos são reverenciados. As multidões acometidas são obedientes às pregações fanáticas, são vulneráveis às mentiras deslavadas, sem autocrítica, como se a vida fosse uma brincadeira de pastoril azul ou encarnado.
E assim caminha a humanidade, adoecendo na flor da idade e fingindo felicidade nas redes sociais.
Sérgio Gondim, médico