O caso do "Serrote Agudo"

Eu sempre exagerei na tentativa de olhar bem no fundo nos olhos do outro. Talvez acreditasse que só assim eu poderia sentir e capturar a alma

Publicado em 03/11/2024 às 5:00

Quando eu conheci Rafael ele já havia abandonado a adolescência. Era um jovem longilíneo, bonito, pele crestada pelo sol do sertão e cabelos cheios e rasantes. Saiu do Cariri ainda novinho, para estudar no Colégio Salesiano e depois ser advogado. A verdade é que o rapaz desejava mesmo ser historiador. Por isso sentia necessidade de se embrenhar nos fatos históricos exatamente como adentrava na caatinga. Amava ler “Sagarana”, “Grande Sertão Veredas”, “Quinze”, “Menino de Engenho”, “Capitães de Areia ”além de outras obras sobre a mesma temática.

Eu sempre exagerei na tentativa de olhar bem no fundo nos olhos do outro. Talvez acreditasse que só assim eu poderia sentir e capturar a alma. Logo concluí que meu desejo era só delírio. O rapaz jamais permitiria. Ele costumava virar o globo ocular para direita e para a esquerda. Outras vezes baixava a cabeça ou espreitava o infinito. Parecia comunicar que o ser humano era uma figura invasiva e pecaminosa. Aos poucos, o que era hábito se converteu em minha obsessão. Impudente, certa vez campeei uma lágrima em seus olhos. Ela poderia revelar sofrimento, amor, alegria, tristeza, raiva, medo, afeto, vergonha, admiração ou até culpa.

Nada aconteceu. Para minha surpresa, o rapaz comentou com certa alheação que era um homem despojado de medo. Desconfiei dessa mentira, apenas pelos olhos irrequietos e fugidios. Numa das raras oportunidades de conversa, indaguei se ele pensava em casar. Disse-me que o pai, um fazendeiro abastado, lhe havia destinado uma virgem bonita de seios abundantes destinados a alimentar os futuros rebentos. Mas logo mudou de assunto e nunca mais conversou sobre o tema.

Numa manhã qualquer, tentei conhecer os projetos do rapaz. Mas ele repetiu, circunspecto, que “o futuro é como uma pipa, quanto mais soltamos a linha mais distante ele vai ficando”. Num dia chuvoso de agosto, dividimos o espaço de uma biblioteca. Ganhei coragem e indaguei: Você já percebeu que seus olhos estão sempre voejando sem pouso certo? Poucas vezes eles ficam paralisados. Sem afastar os olhos do infinito ele responde: “por vezes é preciso lançar os olhos para bem longe. Só assim é possível enxergar o que está bem perto”.

Descobri, com o tempo, que o jovem não desejava ser advogado. Afinal, jamais acreditou na justiça, exceto na de Deus. Certa vez ele falava das viagens feitas na companhia de vaqueiros da sua fazenda. Mal começava o dia, o grupo tangia o rebanho ao som do berrante. Para ele o vaqueiro era sempre um herói que adentra ou se embrenha na mata para capturar e trazer de volta a rês brava ou arredia. Eu escutava tudo de esguelha, como se estivesse no sereno nos bailes da minha adolescência. Por isso ele jamais desconfiou do meu empenho.
Acredito que qualquer narrativa configura a verdadeira história daquele que expõe ou escreve. Eis a minha que se revela em dois atos conectados. Reinicia com a chegada de um judeu francês de nome Marcolino, proprietário da fazenda “Serrote Agudo” localizada no Cariri.

No passado, havia festa de gado e vaquejada reunindo a população local. Hoje ela é um assentamento ou quase museu. Zé Marcolino Alves, autor paraibano que morreu em 1987, vítima de um desastre na Caraíba, Pernambuco, passou pelas terras do fazendeiro em seu cavalo e sentiu o coração apressado e cheio de dor e arrepio. Naquele instante uma canção triste germinou da agonia e aflição do compositor.

Não era o aboio, era o “Serrote Agudo” que assim principiava: “em viagem incontinente, vendo a sua solidão, saí pensando na mente, eu vou fazer um estudo pra lhe contar amiúde, quem já foi Serrote Agudo...foi um reino encantado... onde o touro em manada borrava cavando o chão, fazendo revolução na época do trovoada, dando berros enraivado por achar-se enciumado... Um major rijo, porém animado, fazia festa de gado onde o vaqueiro afamado campeava todo dia. Hoje, sem major sem nada só se vê porta fechada...não reina mais alegria”.

O “Dicionário Musical Brasileiro”, de Mário de Andrade (1982), introduz o verbo masculino aboiar despojado de estrófica.. O aboio permite as vocalizações ou palavras interjectivas: “boi êh boi”... Diferente é a música triste de Zé Marcolino.

O belo e o trágico trazem de volta a figura de Rafael sete décadas depois. Na minha frente percebo a imagem de um duplo: um corpo que não era mais o imaginário de outrora; um corpo antes desejado e que já não configurava algo possível. Eis a história da velhice como algo travento e desconfortável. O belo rapaz de outrora ainda era magro e delgado, embora a espinha dorsal já estivesse curvada e os ombros revelassem certo desalinho ou desconcerto. Os cabelos estavam muito ralos e infinitamente brancos e sem corte. Percebi pequenos sinais de pele na coloração de rebuçado queimado. Estavam em todos os espaços da sua carne enrugada. Pareciam numerar os anos de vida. Logo identifiquei o seu olhar hirto ou meio acuado repetindo os velhos tempos. Mas juro que havia uma transformação inesperada: já não existia linha suficiente para soltar a pipa. O futuro era agora o presente.

Novamente escutei a canção de Zé Marcolino na voz do grande Luís Gonzaga. E tudo sucedeu num breve instante: Rafael escutou Gonzaga e chorou alto e forte. Mesmo sem mostrar os olhos, disse muito alto: “Pai, mãe, vocês se foram, todos estão indo, e eu?

Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas.

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