Aborto: mais um retrocesso legislativo

Felizmente, todavia, a PEC nº 164 ainda irá passar pelo crivo de uma comissão especial, pelo plenário da Câmara, em dois turnos.......

Publicado em 05/12/2024 às 0:00 | Atualizado em 05/12/2024 às 10:19
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No final do século 19, até meados do século 20, na Inglaterra e na França, principalmente, movimentos feministas afloraram em defesa do aborto, na época já considerado um direito das mulheres. Porém, por influência e pressão da Igreja Católica, os anseios femininos não prosperaram. Somente com a Revolução de 1917, na antiga União Soviética, o aborto deixou de ser considerado crime, embora com algumas limitações para a interrupção da gravidez. Por volta de 1930, entretanto, a Suécia e a Dinamarca, de maioria protestante, introduziram em sua legislação a possibilidade do aborto, ultrapassando a forte resistência das nações de maioria católica.

No Brasil, com a aprovação do atual Código Penal de 1940, até hoje em plena vigência, o aborto foi tipificado como crime contra a vida, portanto, sujeito a julgamento pelo Tribunal do Júri. O crime de aborto se consuma quando alguém provoca a interrupção da gravidez, sem o consentimento da gestante, desde a concepção até o nascimento do nascituro com vida; mesmo a gestante consentindo, quem provocar o aborto, de forma intencional, também estará incidindo no ilícito penal. Nesses casos, consumada a interrupção, sem o consentimento da gestante, a pena é de 3 (três) a 10 (dez) anos de reclusão.

Em sua redação original, que até hoje vigora, o mesmo Código Penal de 1940 estabelece que nos casos em que a gestação possa comprometer a vida da gestante, o médico está autorizado a realizar a interrupção. Lado outro, se a gestação for proveniente de estupro, com o consentimento da gestante ou do seu representante legal, a Lei Penal autoriza a interrupção da gestação, sem a sua criminalização, tanto para a gestante, como para o médico que realizar o aborto.

O Supremo Tribunal Federal (STF), apreciando a Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional (ADPF), pelo seu plenário, em 2012, autorizou a realização do aborto, com a sua consequente descriminalização, sempre que restar comprovado que o nascituro apresenta quadro de anencefalia, fundamentando a sua decisão na proteção do direito à vida, à dignidade humana, à saúde e à não submissão à tortura.

O Mesmo STF, iniciando o julgamento da ADPF nº 442, em 2018, até agora com o voto favorável da ex-ministra Rosa Weber, prestes a ingressar no mérito, tem tudo para decidir pela descriminalização do aborto, de uma forma geral, nos casos em que a gestação tenha atingido o prazo de até a 12ª (décima segunda) semana da gravidez, com fundamento nos direitos e garantias da mulher, especialmente o direito à vida e à cidadania. O julgamento, com efeito, a qualquer momento poderá ser reiniciado pela Corte Suprema.

Hoje, portanto, no Brasil, o aborto pode ser realizado com a comprovação de que a gravidez tende a comprometer a vida da gestante, quando ele for decorrente do crime de estupro e, quando, comprovadamente, o nascituro apresentar doença congênita de anencefalia, que comumente é detectada depois do primeiro mês de gravidez.

Porém, desde há muito os países civilizados têm adotado e autorizado a realização do aborto, independentemente de situações especiais, como é o caso da Rússia (1920), México (1931), Polônia (1932), Islândia (1935), Espanha (1936), Suécia (1938), Japão (1948), Noruega (1978), Estados Unidos da América (1967), Reino Unido (1967), Canadá (1969), Austrália (1969), Índia (1971), França (1975) e Alemanha (1995), dentre outros.

Numa atitude drástica, retrógrada, inconsequente, conservadora e inconstitucional, eivada de grave violação à intimidade da mulher e ao seu direito de decidir pelo nascimento ou não da sua prole, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, recentemente, ofereceu parecer favorável à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 164, apresentada pelos deputados Eduardo Cunha (RJ) e João Campos (GO), em 2012, um cassado, outro defensor da pena de morte, resultando na proibição da interrupção da gestação no Brasil, em qualquer situação fática, revogando, com isso, as autorizações emanadas do Código Penal de 1940 e em detrimento da livre decisão da gestante, detentora absoluta do seu corpo, a quem cabe decidir sobre a viabilidade ou não do nascimento de um filho.

Felizmente, todavia, a PEC nº 164 ainda irá passar pelo crivo de uma comissão especial, pelo plenário da Câmara, em dois turnos, sem contar que o Senado Federal terá a oportunidade de analisar, também, o tamanho do retrocesso legislativo deprimente, uma proposta conservadora e que destoa com pensamento da maioria da humanidade, mormente daqueles que querem preservar a dignidade humana e os direitos da mulher.

Adeildo Nunes, juiz de Direito Aposentado, professor da pós-graduação do Instituto dos Magistrados do Nordeste (IMN), doutor e mestre em Direito de Execução Penal, membro do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP)

 

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