Mudança na relação psiquiatra-paciente

Quando o conhecimento médico é facilmente acessado fora dos domínios tradicionais, é mais fácil que a expertise dos médicos seja contestada.

Publicado em 04/01/2025 às 0:00 | Atualizado em 04/01/2025 às 10:37
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Um interessante editorial de Beaglehole e colaboradores foi publicado online em dezembro último no British Journal of Psychiatry. Ele aborda transformações na psiquiatria contemporânea, evidenciando ligações entre o aumento de diagnósticos em condições psicopatológicas diversas, como autismo, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), dentre outras. Argumenta-se que essas tendências têm raízes comuns, impulsionadas por mudanças sociais e culturais, especialmente na relação médico-paciente.

Os autores referem que, historicamente, a relação psiquiatra-paciente baseava-se na expertise do médico como fonte central de conhecimento. No entanto, em condições emergentes como autismo e TDAH, essa dinâmica tem sido desafiada por fatores como maior entendimento em saúde mental pelo público leigo. Campanhas contra o estigma e o acesso a informações via redes sociais aumentaram a conscientização pública. As mídias sociais também fornecem uma rede de suporte acessível para aqueles com problemas semelhantes. Os indivíduos agora compartilham e discutem abertamente seus diagnósticos psiquiátricos e jornadas de tratamento.

Na nova forma de relacionamento médico-paciente, os pacientes podem pré-diagnosticar sua condição antes da consulta. Devido a eventuais inadequações nas fontes de informação, acaba sendo comum que as pessoas atribuam a si próprias vários diagnósticos. Essa abordagem se distingue do processo médico tradicional de anamnese e exame para se chegar a uma conclusão clínica. Muitas vezes torna-se difícil para o profissional discordar do que é autoevidente para o indivíduo, principalmente quando o histórico de sintomas é fornecido por pessoas com considerável conhecimento prévio de seu suposto transtorno. Se o psiquiatra estiver em desacordo com a formulação do paciente, é desafiador para ambos e isso tende a afetar negativamente o relacionamento terapêutico a ser construído.

Quando o conhecimento médico é facilmente acessado fora dos domínios tradicionais, é mais fácil que a expertise dos médicos seja contestada. A ampliação dessa base de instrução contribui para uma mudança fundamental no contrato social entre médicos e sociedade. Os médicos passam a ser alocados numa mera função de legitimadores das suspeitas dos pacientes, atestando a necessidade do acesso a tratamentos. Beaglehole e colaboradores apontam que a conjuntura se complica na existência de vários sites de "avalie meu médico" com o objetivo de alertar as pessoas sobre profissionais abaixo do padrão. Um risco é que os médicos sejam mal avaliados se oferecerem uma opinião contrária àquelas pré-formadas pelos pacientes. Outro risco, ainda pior, é que os médicos modifiquem os seus julgamentos clínicos para resguardar boas avaliações. A partir disso, os benefícios da experiência e da competência médica podem ser perdidos.

Já se discute há bastante tempo que o desequilíbrio de poder entre médicos e pacientes deve ser reduzido. As decisões compartilhadas e a consideração das necessidades individuais do paciente no planejamento terapêutico são pedras de toque na avaliação da boa prática psiquiátrica contemporânea. Eu, Amaury, costumo lembrar que uma consulta médica é o encontro entre dois especialistas: um é expert em doenças e o outro é o maior conhecedor da sua própria vida. Também é fato que a informação na mídia leiga responsável frequentemente ajuda no reconhecimento de transtornos impactantes como o TDAH e o autismo. Mas essa nova configuração do vínculo pode gerar contratempos.

O esforço é ajustar essa nova realidade para que nos aproveitemos das vantagens e minimizemos os problemas. Para tanto, a avaliação clínica precisa ser cada vez mais cuidadosa, exercida com tempo adequado e capacidade técnica apurada. Além disso, essa discussão que já ocupa as conversas dos grupos de psiquiatras precisa ser levada ao consultório, numa relação de confiança mútua.

Amaury Cantilino, psiquiatra e psicoterapeuta

 

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