João Humberto Martorelli : cartas de amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz
Quem lê as cartas sente-se inclinado a repudiar a teoria da homossexualidade do poeta, no mínimo, a admitir, a se crer na efeminação de alguns textos

Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz é um livro delicioso. A primeira parte do relacionamento entre os dois se deu entre 1919 e 1920, mantendo-se basicamente pela correspondência epistolar e por encontros na rua e nos bondes.
Há registro de um primeiro beijo no escritório onde os dois trabalhavam e indícios, nas cartas, de um apetite sexual de um pelo outro, até mesmo de beijinhos nos seios, carinhosamente chamados de pombinhos.
As cartas que revelam o homem por trás do poeta
Quem lê as cartas sente-se inclinado a repudiar a teoria da homossexualidade do poeta, no mínimo, a admitir, a se crer na efeminação de alguns textos poéticos, que Fernando era bissexual.
Porque há lascívia, por exemplo, neste texto: e gostava de lhe dar um beijo na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos (olha os pombinhos aí), e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despi-a, e o papel acaba aqui mesmo.
Em outra carta, ainda mais ardente: Meu Bebé para sentar no colo! Meu Bebé para dar dentadas ! Meu Bebé para... (e depois o Bebé é mau e bate-me...).
Corpinho de tentação te chamei eu; e assim continuas sendo, mas longe de mim. Bebé, vem cá; vem para o pé do Nininho; vem para os braços do Nininho; põe a tua boquinha contra a boquinha do Nininho... Vem..,. Estou tão só, tão só de beijinhos...
Entre o amor de Ofélia e as inseguranças de Fernando
Ofélia dedicava um amor incondicional a Fernando, e se declarava arrasada por não estar ainda casada com ele. É de dar pena. Completamente enlevada, perdida, amorosa (e amorável, como dizia ele), cheia de esperanças de um enlace definitivo que nunca vem, tomada pela insônia, pela tristeza, pela falta de vontade até de comer.
Dias havia em que perdia quilos e quilos só de tristeza. O lado de Ofélia é para se ter um contraponto. O que interessa mesmo é Fernando.
O poeta, em benefício da literatura e da humanidade que recebeu sua obra, resistia, dizendo: quero organizar essa vida de pensamento e de trabalho meu. Se a não conseguir organizar, claro está que nunca sequer pensarei em casar.
Se a organizar em termos de ver que o casamento seria um estorvo, claro que não casarei. Mas é provável que assim não seja. O futuro - e é um futuro próximo - o dirá. E, com isso, deixava Ofelinha amuada, esperando o dia em que o futuro chegasse. Enrolando a mulher.
O lado mais humano de Fernando Pessoa
As cartas revelam o homem por trás do gênio. Fernando tinha, para o que dizia às relações afetivas, a autoestima muito baixa. Inúmeras vezes diz a Ofélia: ninguém gosta de mim.
E, depois de pedir que ela o amasse, com uma banalidade de homem mortal, declara-se um meliante, um cevado e um javardo com ventas de contador de gás.
Também não são poucas as vezes em que se acredita velho demais para Ofélia, sempre a apontar caminhos para a não adequação da relação a dois.
Fernando gostava de piadas. Na retomada da relação, depois de 10 anos separados, ele lhe mandou uma fotografia bebendo no bar, com a dedicatória: Fernando Pessoa em flagrante delitro.
Ao justificar a inconsistência da letra em uma carta, diz que para isso há duas razões. A primeira é o papel; a segunda é ter descoberto aqui em casa um vinho do Porto esplêndido, de que abri uma garrafa, de que já bebi metade.
A terceira razão é haver só duas razões, e, portanto, não haver terceira razão nenhuma (Álvaro de Campos, engenheiro).
Nessa mesma carta, diz cá estou em casa, sozinho, salvo o intelectual que está pondo o papel nas paredes (pudera! havia de ser no teto ou no chão!). A escrita, por pueril que fosse, o instigava. Nem que fosse para tratar com ironia o pobre trabalhador que lhe punha o papel à parede.
As contradições do poeta
Nas cartas, vejam só, Fernando falava das dificuldades de seus empreendimentos comerciais. E do desejo de ganhar dinheiro na loteria, o que talvez pudesse ser importante para a vida dos dois (sempre reclamava de ter pouco dinheiro).
Confesso que fiquei arrasado, ao ver esse assunto prosaico e pequeno burguês na boca, melhor dizendo, na pena do ídolo. Não é só: intrigas familiares cheias de mexericos perpassam as cartas com alguma frequência.
E porque vi um Fernando lascivo, apaixonado mas enrolando Ofélia, piadista, tratando de empreendimentos comerciais e, pior, apostando na loteria, com autoestima baixa, no meio de intrigas e mexericos, desrespeitoso com o trabalhador, ao nível do mais normal dos homens, é que fechei o livro com a sensação de que nunca deveria tê-lo lido.
João Humberto Martorelli, advogado