Sérgio C. Buarque: 'O que o novo Imposto de Renda tem de justiça social?'
Convém não esquecer que a justiça social é muito mais do que a justiça tributária e tem a ver com a forma de utilização da receita

O governo anunciou na semana passada uma redistribuição social da contribuição do imposto de renda como uma forma de justiça tributária.
O conceito básico do Projeto de lei do Governo Federal é correto: isenta do Imposto de Renda os brasileiros que ganham até cinco mil reais mensais, compensando a perda de receita com o aumento das alíquotas para os brasileiros que ganham acima de 50 mil mensais.
A medida beneficia a população de menor renda e cobra participação maior do grupo de pessoas de renda alta: dez milhões de brasileiros não pagarão mais imposto de renda e apenas cem mil brasileiros deverão arcar com alíquotas adicionais.
Com isto, de acordo com os cálculos, se trata de uma reforma neutra do ponto de vista tributário, não mexe na carga tributária e não gera perda de arrecadação. Palmas para o governo Lula.
Entretanto, convém não esquecer que a justiça social é muito mais do que a justiça tributária e tem a ver com a forma de utilização da receita nos gastos e investimentos públicos para ampliar o acesso da sociedade, especialmente os mais pobres, aos serviços públicos, educação, saneamento e saúde.
Além disso, o conceito implícito no projeto de lei do Governo é justo e muito bom, mas a execução é confusa e tem muito de improvisação.
Por que, em vez de criação de descontos sobre as rendas menores (entre 5 e 7 mil) e adicionais de alíquotas sobre as rendas, o governo não apresentou uma proposta de nova tabela de imposto de renda com redistribuição de alíquotas nas diferentes faixas de renda?
Por outro lado, o modelo apresentado ainda conserva uma razoável injustiça fiscal na medida em que os brasileiros com renda mensal entre 7 mil e 50 mil (faixa muito ampla e desigual) estarão submetidos ainda à mesma alíquota de 27,5%.
Na regra atual, é bom lembrar, quem ganha acima de R$ 4.664,68 já se enquadra na alíquota de 27,5%, o que constitui, efetivamente, uma carga excessiva para renda tão modesta.
Imposto de renda sobre dividendos
Outra improvisação da proposta do governo reside no tratamento que é dado à cobrança de imposto de renda sobre dividendos dos acionistas de empresas, algo que já vinha sendo discutido e constitui uma alternativa correta, desde que balançada com o imposto pago pelas empresas antes da distribuição dos dividendos.
Sem uma análise específica e um tratamento adequado, a proposta do governo simplesmente passou a cobrar impostos sobre todas as fontes de renda, incorporando os dividendos.
Como as rendas provenientes de salários e aluguéis já são tributáveis, para todas as faixas de renda, rigorosamente, o adicional de imposto cobrado dos chamados “super-ricos” estará concentrado nos dividendos.
Cabe, portanto, outra pergunta simplificadora: por que o governo não definiu, simplesmente, que a receita de dividendos passaria agora ser tributada, fazendo ajuste correspondente nos impostos das empresas, com aplicação de uma nova tabela que poderia ter alíquotas aumentadas para quem ganha mais de 600 mil?
Digamos que o governo foi muito bem-intencionado na redução da injustiça tributária e vamos supor que os resultados serão satisfatórios. Mesmo assim, é necessário destacar que cabe ao Estado como missão central a promoção da justiça social através da utilização dos recursos públicos que o governo consegue arrecadar.
Paga mais quem mais ganha é um princípio correto do ponto de vista tributário. Entretanto, com a receita total do Estado (independente da fonte), deve promover a justiça social com os investimentos e gastos públicos que ampliem a oferta dos serviços públicos de qualidade para toda a população, revertendo a enorme desigual social do acesso ao esgotamento sanitário, à educação e à saúde.
Inclinação pelo consumo e transferência de renda
Ocorre que o governo Lula e o próprio presidente têm uma forte inclinação pelo consumo e pela abordagem das desigualdades através transferência de renda que permite aos pobres consumir mais, comer mais carne, como ele insiste nos seus discursos.
“Os ricos vão continuar comendo lagosta para que os pobres possam comer carne”, falou ele no seu pronunciamento de apresentação do projeto de isenção do imposto de renda. Os pobres vão comer carne em cima da lama e com os filhos frequentando escolas precárias.
Apostar no consumo é, evidentemente, mais barato e muito mais rápido que ampliar o esgoto sanitário para mais da metade dos domicílios.
E jogar dinheiro no bolso dos brasileiros provoca uma satisfação imediata e a aprovação do governante que não tem tempo (no seu mandato) nem recursos suficientes para entregar cidades saneadas e escolas de qualidade.
Claro que o aumento da renda da população é muito importante, mas pode criar uma ilusão se for acompanhada de uma pressão inflacionário caso a demanda adicional não for acompanhada do aumento da oferta. O que, em parte, aconteceu nos últimos meses com a inflação corroendo a elevação da renda da população.
Assim, mesmo que não se possa discordar do conceito da proposta apresenta agora pelo governo, é necessário corrigir dois equívocos de princípio: que o Estado deve promover a justiça social na aplicação da receita através dos investimentos e dos gastos públicos (e não, exatamente, na distribuição social dos impostos); que o Estado deve priorizar a entrega de serviços púbicos de qualidade à população de modo a reverter as desigualdades de acesso ao saneamento, à educação e à saúde (e não, exatamente, através de distribuição de renda para aumentar o consumo).
*Sérgio C. Buarque, economista