Editorial

Quem ouve esse grito?

Publicado em 15/08/2020 às 6:00
Leitura:

O Recife já teve dias melhores. Quem viveu lá pelos idos dos anos 50, 60, 70 do século passado, sabe que havia muita pobreza visível nos morros e nos alagados, a cidade era o eldorado dos pobres e excluídos de todo o interior do Nordeste, até um intelectual do Recife, Josué de Castro, ganhou notoriedade mundial escrevendo uma Geografia da Fome, mas sabe também que vivíamos um momento histórico de deslumbramentos com a construção de uma nova capital e de uma das maiores pontes do mundo, a Rio-Niteroi. O Recife viveu aqueles dias, mas já então os sonhos sociais eram atormentados pelas desigualdades.

Um governador da época, Cid Sampaio, ilustrou sua campanha com uma frase onde dizia que Pernambuco produzia trabalhadores para o Sul e criancinhas para o céu. E, mesmo assim, o Recife teve dias melhores, sim. Era possível circular pelas ruas centrais sem ver famílias sem-teto dormindo ao relento, nem a miséria exposta em cartazes com apelos como "Sou morador de rua", "Estou com fome", "Preciso de ajuda". Apelos acompanhados por invocações a Deus, num desmoronamento social.

O desmoronamento social do Recife está por toda parte, viola todo os valores e normas de Direito, a começar pela Constituição Federal, cujo preâmbulo confrontado com a realidade das ruas centrais do Recife é a negação de tudo o que se pode imaginar como ordem social fundada em lei. Ela fala de representantes do povo, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte "para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça social como valores supremos de uma sociedade fraterna...". E a "fraternidade" se estende por 250 artigos, mais parágrafos e incisos.

Falta dizer para que foram feitas as leis aos que vão às ruas do Recife e mostram placas pedindo socorro. Podiam pedir o cumprimento das leis, mas as mensagens de desespero apelam para Deus e por sobre esse cenário de fim de mundo - se é possível ir além dele - tem o desespero infantil que faz da Constituição e de todas as leis que vieram abaixo dela peças infantis, brincadeiras, ficções. Como relata um dos cartazes mostrados a todos os motoristas que passam nas ruas centrais do Recife, dizendo: "sempre morei na rua, vi a turma todinha com placa e resolvi botar para ver como seria esse negócio, e dá para arrumar um trocado, com esse dinheiro a gente conseguiu alugar um barraco para sair da rua". Um pedido de socorro no Brasil que já foi um país que iria "pra frente", que viu crescer a maior cidade da América Latina e, dentro dela, a maior cidade nordestina, fruto do êxodo causado pela fome e pela falta de esperança. Claro, diante de apenas uma fração disso tudo já seria suficiente para pedir socorro. Mas, a quem?

Comentários

Últimas notícias