Quando a carga no asfalto é mais importante que a vida, onde resta a humanidade?

JC
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Publicado em 03/04/2023 às 23:17

O desabafo de um bombeiro socorrista ganhou destaque na coluna Mobilidade, de Roberta Soares, no JC de domingo. Ao chegar para tentar salvar um motorista de caminhão preso ao volante após um sinistro, o bombeiro Lindomar Rodrigues, experiente na profissão, não suportou a crueldade da cena que presenciou.

Enquanto o acidentado seguia isolado e sem a menor atenção de quem foi ao local, centenas de pessoas saíram de suas casas, nas proximidades, para roubar a carga do caminhão virado na pista. A carreta de calçados atraiu uma pequena multidão, que se mostrou alheia à causa daquela oportunidade de roubo, e mais alheia ainda ao fato de uma vida poder estar em jogo, sufocada entre as ferragens do veículo.

Ninguém fez aparentemente nada sequer para amparar a vítima em seus últimos momentos. Ou para respeitar a morte de alguém que dirigia e transportava a carga subitamente vista como o objeto de desejo
incontido dos saqueadores.

Foi na BR-104, na altura de Panelas, no Agreste, onde tudo aconteceu. “O bombeiro militar se indignou com a indiferença que a sociedade vem desenvolvendo em relação à vida humana, ainda mais potencializada nos casos de mortes no trânsito”, escreveu Roberta Soares.

O socorrista gravou vídeos para registrar a indignação, lá mesmo, enquanto o saque se dava. Apontava para o jovem preso às ferragens e criticava o comportamento coletivo, na esperança de sensibilizar os ladrões de ocasião, apressados para pôr a mão na melhor mercadoria. Houve até disputas violentas pelos calçados, em cenas típicas de saques.

Pode-se tentar entender se a necessidade que fez os ladrões ressoa mais alto que a empatia com o motorista. Mas mesmo que a carga derrubada fosse de comida, ainda assim, seria de se esperar o interesse e a solidariedade de alguns em torno da vítima.

E não era comida espalhada no asfalto. Pelo testemunho do bombeiro, em desespero diante da ação dos indiferentes, a desumanidade guiou aquele grupo de pessoas para o assalto consumado. Mais tarde, apenas cinco indivíduos foram detidos pela polícia, em consequência do saque.

Muito pior que a impunidade, foi o gesto maciço de abandono que cobriu a dor última de alguém de uma triste invisibilidade. Todos viam e ninguém enxergava, como na história de José Saramago em “Ensaio sobre a cegueira”.

O corpo do motorista saiu das ferragens após quatro horas de trabalho da equipe de bombeiros. É impossível saber quanto tempo ele sobreviveu depois do impacto. As pessoas que correram para o local tinham outro interesse, fora da cabine em que uma vida agonizava.

Sem a menor vergonha, com muita pressa, para não perderem a chance aberta pela morte do condutor do veículo. Esse comportamento não é novidade, o que amplia o choque dos que se indignam: faz tempo que a história humana balança entre a barbárie e a indiferença.

Nesse pendular desumano, o desafio civilizatório permanece urgente – tanto quanto o brado de um bombeiro espantado com o que via – e com o que não via.

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