Democracia

Discriminação política parece Lei da Ficha Suja

Resta saber o alcance da engenhosa legislação em campos como a liberdade de expressão e o direito à informação

JC
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JC
Publicado em 16/06/2023 às 0:00

Um projeto de lei aprovado sem debate, na Câmara dos Deputados, criminaliza o que é chamado de “discriminação contra pessoas politicamente expostas”. São políticos e seus familiares com processos na Justiça, ou mesmo os condenados que possam recorrer da pena. Como no Brasil os recursos judiciais se estendem por décadas, o que a Câmara aprovou, por 252 votos a favor e 163 contra, em regime de urgência e sem passar pelas comissões da Casa, soa mais como uma Lei da Ficha Suja, em contraponto à Lei da Ficha Limpa que impede alguns condenados de se candidatarem nas eleições.
Da constelação partidária nacional, apenas o Novo e a federação Rede-PSOL orientaram o voto contra. A federação governista do PT-PV-PCdoB liberou a bancada, ou seja, lavou as mãos para a novidade. Os demais blocos, que formam a maioria, incluindo União Brasil, PSB e PSDB-Cidadania, foram pela orientação favorável à medida. O projeto aprovado é de autoria da deputada Dani Cunha, do União Brasil do Rio de Janeiro, que vem a ser filha do ex-deputado e ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que teve condenações que somaram 55 anos de detenção, mas hoje se encontra em liberdade, sem sequer a tornozeleira eletrônica que chegou a usar em prisão domiciliar.
Uma das preocupações dos parlamentares é a dificuldade de abertura de conta em bancos que se negam a fazê-lo para políticos com processos judiciais. Para o relator do projeto, deputado baiano do PP, Cláudio Cajado, o que se pretende é manter a presunção da inocência como princípio constitucional, e não, legislar em causa própria. O projeto de lei é abrangente: políticos com mandato, integrantes do Judiciário e do Executivo, presidentes partidários, todos ganham a blindagem da inocência mesmo se tiverem sido condenados por mais de uma instância, desde que caibam – e sempre cabem – recursos para adiar a condenação. Familiares e colaboradores dos envolvidos também são agregados à proteção.
As discriminações previstas na lei aprovada, que segue para o Senado, incluem: acusar as condutas que estão na Justiça sem terem sido completamente julgadas, impedir o acesso a cargos de administração, impossibilitar benefícios profissionais por relação política, negar emprego em empresa privada por associação política, e negar a abertura de conta bancária a um político ou autoridade. Lembra ou não o oposto da Ficha Limpa? As penas previstas vão de dois a quatro anos de prisão. Resta saber o alcance da engenhosa legislação em campos como a liberdade de expressão e o direito à informação, por exemplo, quando os casos em tramitação na Justiça forem lembrados em reportagens que mencionem os políticos investigados. Será crime?
Ao invés de avançar na prevenção ética contra a corrupção, o Brasil vai dando seguidos passos para trás, minando o aprimoramento democrático. Triste é ver o parlamento – cada vez mais com “p” minúsculo – trabalhar contra a democracia, cuja valorização deveria ser a sua essência. Com a palavra, os senadores. E quem sabe, o Supremo Tribunal Federal, apesar das investiduras em decisões monocráticas, última instância da esperança em uma República sufocada.

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