ARGENTINA

Entre a tragédia real e o delírio burlesco

Segundo turno das eleições presidenciais terá a disputa entre o realismo econômico de Sergio Massa e o ilusionismo populista de Javier Milei

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JC

Publicado em 24/10/2023 às 0:00
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O resultado do primeiro turno das eleições para presidente da Argentina, de certo modo, surpreendeu pela moderação, ou pelo freio da onda radical que parecia tomar conta do país, com a ascensão meteórica de Javier Milei e suas propostas extravagantes para governar. Com quase 37% dos votos apurados, Sergio Massa, ex-ministro da Economia do atual governo, partiu na frente, com Milei aparecendo com 30% da preferência do eleitorado. Obtendo perto de 24%, Patricia Bullrich ficou em terceiro lugar – uma votação expressiva que pode, em tese, definir o segundo turno, em caso de indicação explícita da candidata por um dos dois postulantes finais.
Buscando o desvio da situação econômica calamitosa, que vem há décadas atormentando os argentinos, Massa aproveita a direção do vento das urnas para entoar um discurso anti-extremista, voltado para a afirmação das instituições e a valorização da democracia. O mote faz uso do comportamento e dos discursos inflamados do opositor, que faz campanha com uma motosserra, e diz pretender exercer o poder através de plebiscitos, com propostas como a dolarização da moeda, o fechamento do Banco Central e a redução drástica dos ministérios. Javier Milei protagonizou, no primeiro turno, uma campanha francamente populista, no limite do histerismo em alguns momentos, mostrando-se como um político do lado de fora da política para transformar a realidade que pressiona a população.
Depois de se nomear libertário no primeiro turno, Milei baixou um tom no isolacionismo, após o resultado no domingo, para sinalizar a intenção de atrair os eleitores da terceira colocada. Apesar de buscar no desejo de mudança a identidade com quem votou em Bullrich, o candidato que abraça o rótulo de anti-establishment pode ter dificuldade na consolidação de apoio tradicional. A candidata do ex-presidente Mauricio Macri, por sua vez, disparou o desgosto com o atual governo, de certa maneira untando os populismos de direita e de esquerda.
O realce da condição precária da economia é o principal calo de Massa, ministro da pasta responsável por uma inflação de 138% ao ano, uma das maiores do mundo. Sua relação ambígua com os Kirschner – com quem já trabalhou, e também já detratou – pode ser incômoda na campanha da reta final. Ou ser um trunfo, já que o kirschnerismo mantém grande influência na política argentina, apesar do fracasso econômico acumulado e dos casos insistentes de corrupção. Massa desponta ainda como voto no peronismo, resgatando a emoção da política tradicional que Milei aponta como um mal que precisa ser combatido.
O tal do anarcocapitalismo de Javier Milei perde fôlego, no veredito parcial das urnas na Argentina. Mas o populismo não se rende tão facilmente, e o delírio burlesco ainda ameaça encantar uma população deprimida pela conjuntura, tragicamente real, resultante de longa sequência de más escolhas em vários governos. Entre o representante da realidade trágica, e o radical delirante, o tango segue seu passo.

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