Um mundo ou nenhum

Em Cuba, na Faixa de Gaza ou no Brasil, a insegurança alimentar segue desafiando os valores humanistas e as escolhas da civilização no século 21

Publicado em 21/09/2024 às 0:00

A contenção das armas nucleares como preocupação nascente no século passado foi a premissa para o título do livro “Um mundo ou nenhum”, da física norte-americana Katharine Way, publicado no Brasil pela Paz & Terra, décadas atrás. A expressão vale para a atualidade em relação aos gastos trilionários com guerras e conflitos que podem culminar em um cenário apocalíptico de nuvens radioativas sobre o planeta – nosso único lar, oásis no deserto cósmico, como ressalta outro físico, este brasileiro, Marcelo Gleiser. Mas também serve para expressar o absurdo permanente da desigualdade entre os povos, e entre os indivíduos que formam a espécie humana. E é durante as guerras, ou em locais condenados pela política, que as escolhas por armas ao invés de por comida saltam mais aos olhos como decisões desumanas – pelo menos, assim deveria ser.
Na Faixa de Gaza, os sobreviventes palestinos são penalizados duplamente, pelas bombas e pela devastação: com pouco acesso a tratamentos para os feridos, as doenças se alastrando no meio da destruição, e a falta de comida aumentando para o desespero da população, atacada junto com os terroristas do Hamas há quase um ano, diariamente. Desde março, organismos internacionais denunciam o risco de fome para milhões de habitantes de Gaza, a maioria de mulheres e crianças. Mas o governo de Israel não faz questão de saber disso, na cruzada obstinada contra os terroristas que atacaram os israelenses, no ano passado. E o resto do planeta fecha cada vez mais os olhos para o sofrimento palestino, no vácuo da diplomacia global que se demonstra inútil para proteger os valores humanos acima da política belicista – e dos negócios da guerra.
Enquanto isso, em Cuba, o suprimento de alimentos pelo governo comunista para a população é cada vez mais problemático. A crise de abastecimento afeta produtos básicos, como arroz, pão e café. O pão, que já é racionado, ficou menor, porque a quantidade de trigo que chega na ilha não tem sido suficiente para a demanda – e vem diminuindo. Navios carregados com arroz e sal esperavam pagamento para descarregar, mas a ditadura cubana se depara com falta de financiamento para a comida do povo. O país em crise enfrenta desabastecimento, inflação alta, produção agrícola em queda e aumento da pobreza. O embargo dos Estados Unidos dificulta ainda mais o acesso dos cubanos à comida – mais uma decisão política do século passado que continua trazendo consequências até os nossos dias.
Apesar de não ter guerra ou embargo, o Brasil não se livra da fome. Milhares de pessoas não têm o que comer nas ruas de nossas grandes cidades, da megalópole São Paulo até o espremido Recife, onde a população de rua cresceu consideravelmente, assim como a moradia precária, nos últimos vinte anos. Aqui, a escolha política é a cegueira social, de variados matizes partidários e ideológicos, atravessando governos e eleições como a próxima, em outubro.
Se faltam recursos para a alimentação de parte da humanidade, e não faltam para os armamentos, continuamos – os humanos – a fazer escolhas erradas, às vésperas do primeiro quarto deste novo milênio de velhos hábitos.

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