LEGADO

Legado do médico Enio Cantarelli é a medicina com um olhar para os mais pobres

O médico Enio Cantarelli foi um dos grandes contribuidores para o desenvolvimento da medicina no Estado

Leonardo Spinelli
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Leonardo Spinelli
Publicado em 08/05/2020 às 23:31 | Atualizado em 08/05/2020 às 23:31
ALEXANDRO AULER/ACERVO JC IMAGEM
Médico Enio Cantarelli - FOTO: ALEXANDRO AULER/ACERVO JC IMAGEM

Era um dia como outro qualquer no movimentado prédio do Pronto Socorro Cardiológico de Pernambuco (Procape), que atende diariamente no bairro de Santo Amaro, área central do Recife, centenas de pessoas simples de todo Estado. Naquela manhã, um pequeno sertanejo abordou a enfermeira Ubelina Ma- ranhão, assessora da diretoria do hospital, em busca de um exame de raio-X. “Foi o doutor Enio quem me pediu para falar com a senhora”, disse o agricultor, um senhorzinho humilde de Santa Maria da Boa Vista, Sertão pernambucano. A abordagem deixou a enfermeira espantada, afinal, o doutor Enio Cantarelli convalescia na UTI do Hospital Memorial São José, a poucos quilômetros dali.

Natural de sua índole, pensou Ubelina, já acostumada com o zelo dedicado aos pacientes do médico responsável pela construção do Procape – instituição que atende anualmente mais de 100 mil pessoas desassistidas e sem planos de saúde. Mesmo aposentado, ele ia todos os dias ao hospital, mas naqueles tempos, a saúde o impedia. Era o ano de 2018, e o doutor Enio acabara de passar por uma cirurgia de vesícula e estava em observação médica. “Eu liguei para ele”, completou o sertanejo. “Me disse que já vai ter alta e mandou procurar a senhora para resolver o meu problema.” Contrariada de preocupação pela saúde do médico, a enfermeira, sua velha parceira, cumpriu a missão e levou o paciente à sala de raio-X.

Ubelina e a freira Lucimar Albuquerque, também enfermeira, ajudaram Enio Cantarelli a concretizar o sonho de erguer um hospital público especializado no atendimento cardiológico pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Uma jornada que teve início em 1995, com viagens a Brasília e conversas com dezenas de parlamentares, governadores e prefeitos para levantar fundos para a construção do Procape.

“Ele era assim”, relembra Ubelina. “Qualquer um que o procurasse, a qualquer hora do dia, em qualquer situação, ele atendia e resolvia. Todo mundo do Sertão tinha o telefone dele em Belém do São Francisco, Santa Maria, Serra Talhada… Ele nasceu para ajudar o próximo, perdi um grande amigo”, lamenta.

O problema de vesícula foi um dos desafios que o corpo de Enio Lustosa Cantarelli impôs aos últimos anos de vida daquele homem que nasceu em Belém do São Francisco, em 19 de fevereiro de 1947, para, através da medicina, levar solidariedade, espírito público e humanidade às pessoas, como gostam de lembrar seus inúmeros amigos e parceiros de profissão. Antes de perder a batalha da vida para um AVC, no último dia 1º de maio, doutor Enio passou a última década lutando contra um aneurisma e um câncer.

Foi o fim da carreira do cardiologista, professor da Faculdade de Ciências Médicas, paraninfo de seis turmas, ex-diretor por duas vezes do Hospital Universitário Oswaldo Cruz e da Sociedade Brasileira de Cardiologia e, principalmente, criador do Procape, um dos hospitais especializados no coração mais importantes do Brasil.

“Trabalhei com doutor Enio durante 35 anos”, conta Lucimar Albuquerque, vice-diretora do Procape até a aposentadoria do médico. “Para mim, ele é um ser iluminado. Um profissional que tinha um coração acolhedor, principalmente com os pobres doentes do interior. É um herói, generoso, sensível, uma sensibilidade sem igual. Um amigo, estou muito triste. Doutor Enio era a minha família, meu irmão e meu pai”, emociona-se.

A ideia de erguer o Procape, seu principal legado, começou muito antes de 1995, relembra o médico Ricardo Lima, atual diretor da unidade. “No início da década de 80 ele foi a um congresso no México e visitou o Instituto de Cardiologia do país, que nos anos 80 era muito importante. Naquela época, o México era mais desenvolvido em cardiologia que os Estados Unidos. Os americanos iam para aprender”, relembra. “Enio se apaixonou pelo instituto e achou que Pernambuco deveria ter uma obra igual. Ficou com a obsessão de criar um Instituto de Cardiologia.”

Tempos depois, quando Enio Cantarelli assumiu a direção do Oswaldo Cruz, durante o segundo mandato de Jarbas Vasconcelos à frente da Prefeitura do Recife (1993-1996), o médico conseguiu convencer o prefeito a doar um terreno ao lado do hospital. Não satisfeito, ainda procurou o sucessor, Roberto Magalhães (1997-2000), para garantir mais um pedaço e totalizar uma área de 1.000 metros quadrados.

“O antigo secretário de Saúde queria construir neste local uma garagem para o pessoal da Saúde. E sem aquela parte, não seria possível construir o edifício na altura e volume necessários a um centro de saúde. Examinei o pedido e verifiquei que não havia dúvida de que um hospital de qualidade tinha maior interesse público. Concordei e fiz a doação da parte que faltava”, relembra Roberto Magalhães.

O Procape

Com a área garantida, Enio Cantarelli partiu para desenvolver o projeto e providenciar os recursos. Com o projeto pronto, apresentou a ideia do Procape à sociedade, convenceu políticos, acadêmicos e empresários a destinar verbas àquele sonho. “O Procape foi construído com recursos de emenda parlamentar, um valor que variou entre R$ 36 milhões e R$ 38 milhões”, relembra o médico Ricardo Lima.

Alguns anos depois, e também com doações particulares – o empresário Ricardo Brennand doou o mármore que cobre a fachada do edifício – as instalações do Procape ficaram prontas para uso da população. A inauguração aconteceu em 2006, na gestão de Mendonça Filho como governador.

“Eu tive o privilégio de concluir as obras do Procape, quando participei da entrega do hospital. Pude, como deputado, vice-governador e governador, ao longo do período de viabilização desse grande empreendimento social, constatar a garra, a dedicação e a luta que ele travou para buscar recursos federais junto ao Orçamento Geral da União (OGU) e junto ao Estado. Quero render homenagem pessoal a ele pelo legado, como médico, servidor público e humanista que foi Enio Cantarelli. Um grande amigo”, disse Mendonça Filho.

Hoje o Procape é um hospital de 250 leitos voltados para cardiologia, com quatro salas de cirurgia, duas máquinas de hemodinâmica (a terceira será instalada até o fim do ano), cada uma ao custo de R$ 2,5 milhões. “Para se ter uma ideia da importância social do Procape, ele é único no perfil de hospital de cardiologia em todo o Norte e Nordeste. Quando a gente se volta para o Brasil, só encontra dois hospitais com esse perfil. Um é o Instituto do Coração em São Paulo (Incor) e o outro é o Procape. É uma obra realmente magnífica”, resume o diretor Ricardo Lima.

Em 14 anos, a instituição realizou algo próximo a 8 milhões de procedimentos médicos, 60 mil cateterismos, 17 mil cirurgias cardíacas. Hoje é a maior emergência cardiológica do Norte e Nordeste. Como a instituição é ligada à Universidade de Pernambuco (UPE), também é responsável pelo treinamento e formação dos estudantes de medicina que passam pela Faculdade de Ciências Médicas. A instituição ainda forma, anualmente, mais de 50 residentes médicos na área de cardiologia.

São mais de 1.300 funcionários entre médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, funcionários públicos ou terceirizados que atendem desde crianças a adultos, com tecnologia de radiologia, tomografia, medicina nuclear, ecocardiograma, ergometria.

Voluntários

O espírito humanista de Enio Cantarelli não estimulou apenas os servidores. O Procape dispõe de um grupo de 78 voluntários ativos que ajudam nos cuidados básicos da população que busca os serviços médicos. Maioria vinda do interior, chega com suas famílias, dúvidas e muitas necessidades. “Desde a inauguração trabalhamos juntos e criamos o voluntariado”, diz Iolanda Chaves, coordenadora do grupo, sobre a sua iniciativa em conjunto com o médico.

“O Procape é um dos únicos hospitais públicos do SUS que tem equipe de voluntários. Doutor Enio teve um sonho de 27 anos para atender cardiopatas pobres”, relembra Iolanda. Os voluntários acolhem pacientes e seus familiares que chegam do interior e os encaminham para atendimento. Aos acompanhantes, o grupo fornece roupa de cama, pijama, camisola, organiza bazar para angariar recursos para essas pessoas e realiza celebrações em datas especiais aos pacientes internados entre outras atividades. Para o diretor Ricardo Lima, o Procape é resultado de uma outra característica marcante da personalidade de Enio Cantarelli: seu poder de liderança. “Esse é um hospital público, mas não é obra de governo. Ali é resultado do sonho de um homem que conseguiu deixar um legado para o povo pernambucano”, resume.

Na visão do ex-diretor do Hospital Oswaldo Cruz, o médico Ricardo Coutinho, a concepção e a construção do Procape é resultado natural de um colega que, ainda na época de residência médica – no início dos anos 70 no Hospital dos Servidores do Rio de Janeiro – era conhecido pelo apelido de “Senador”. “Ele foi meu chefe na residência, e ganhou o apelido por ser diplomático, agregador, queria sempre se aproximar das pessoas. Nunca teve interesse político, mas se fosse candidato se elegeria para qualquer cargo.”

Anos mais tarde, Cantarelli e Coutinho fundaram o Unicordis, que em pouco tempo se tornou o maior grupo de cardiologia privada do Recife, até seu fechamento há poucos anos. Foi um pequeno empreendimento privado na vida de um homem que se dedicou com afinco ao serviço público.

“Somente um incontido e sempre presente desejo de ajudar ao próximo, aliado à capacidade visionária e de realização fora do comum para se concretizar neste instrumento tão valioso que ele nos presenteou. Sejamos gratos!”, escreveu o coordenador Médico do Procape, Pedro Casé, em carta dirigida aos amigos. “Siga em paz, Professor! O Senhor entra na minha lista de abraços que quero repetir um dia. Tenho fé nisso!”

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