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A história do homem preso sem julgamento por mais de um ano em Pernambuco por causa de uma bicicleta

Alexsandro da Conceição foi solto após extensa batalha judicial que durou 15 meses. Caso revela engrenagens da política de encarceramento do Estado

Maria Lígia Barros
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Maria Lígia Barros
Publicado em 03/07/2020 às 12:00 | Atualizado em 05/07/2020 às 18:27
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A medida decorre do cenário atual de disseminação do novo coronavírus - FOTO: PIXABAY

Alexsandro da Conceição, de 36 anos, foi preso junto com mais dois homens em flagrante em abril do ano passado, no Recife, por tentativa de furto de uma bicicleta de aplicativo monitorada por GPS. Ele foi encontrado sem o veículo, mas o rapaz que portava o objeto o apontou como envolvido.

Mesmo se tratando de um crime não-violento, o juiz validou a prisão em flagrante e a converteu em prisão preventiva, sob a qual Alexsandro, ex-morador de rua, precisaria esperar pelo julgamento. A história, que ainda aguarda conclusão, revela as engrenagens da política de encarceramento em massa do Estado.

O homem foi levado ao Centro de Observação e Triagem Professor Everardo Luna (Cotel), em Abreu e Lima, onde passou alguns meses. Depois, foi transferido para o Complexo Prisional do Curado, na Zona Oeste.

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Até a sua soltura, no último dia 16 - que só veio após uma extenuante batalha judicial -, foram quinze meses de espera sem sequer as investigações terem iniciado. Até hoje, as provas não começaram a ser produzidas, nem as testemunhas foram ouvidas.

Alexsandro não tem família para além dos quatros cães que resgatou e adotou quando ainda eram filhotes. Ainda assim, ele contou com uma rede de apoio formada por amigos que conquistou enquanto trabalhava como flanelinha na Praça Chora Menino, no bairro da Boa Vista, área central do Recife.

Sensibilizados, os colegas conseguiram um escritório de advocacia para prestar serviços jurídicos pro bono, sem cobrar nada por isso.

A equipe fez um pedido de revogação da prisão no Tribunal de Justiça em Pernambuco (TJPE), e impetrou sucessivos pedidos de Habeas corpus (HC): dois no TJPE; outro no Supremo Tribunal de Justiça (STJ); mais um recurso ordinário; chegando até ao Supremo Tribunal Federal (STF), com agravo. Os detalhes foram repassados pela advogada Camila Andrade, que classificou a prisão como “processualmente absurda”.

O primeiro ponto questionado é o flagrante. “Um homem foi encontrado em Areias com a bicicleta e disse que a recebeu de Alexsandro em Afogados. Os policiais foram até Afogados e o encontraram sem nada, e o prenderam em flagrante”, contou. “O flagrante é só no momento em que a pessoa é encontrada ou cometendo crime ou após o crime, se for perseguido”, explicou.

O que foi alegado para mantê-lo detido foram seus registros antigos. Alexsandro já havia sido preso no início dos anos 2000, pelo crime de roubo, e cumpriu a sentença de sete anos. “A rigor, não deveriam ser usadas contra ele, porque depois que o processo se encerra, a pessoa cumpre a pena e passam-se mais de 5 anos, a pessoa retoma o status de primário. Tecnicamente, ele é réu primário”, citou a advogada.

Ele também não deveria ter sido movido do Cotel. “O Cotel é para pessoas presas preventivamente e o Curado abriga pessoas que já foram condenada. Em tese, essas pessoas deveriam ficar separadas. Mas, na prática, essa definição não se mantém”.



Outra crítica é porque, mesmo se Alexsandro vier a ser condenado, a pena seria tão baixa que ele possivelmente não ficaria em reclusão. “É um crime que não envolve violência (não foi assalto, não foi roubo), e que não demonstra que ele é alguém perigoso para a sociedade. Caso venha ser aplicada, é uma pena muito baixa, que provavelmente ficaria abaixo de 4 anos”, afirmou.

Ao invés do encarceramento, ele poderia cumprir a pena em serviços alternativos. “Então por que mantê-lo preso preventivamente sem ele ser condenado, e por um crime que não envolve violência?”, questionou.

As medidas de prevenção ao coronavírus podem ser mais um fator que atrasa o julgamento não apenas de Alexsandro, mas de outros presos provisórios. “Os processos penais são físicos, não ao processos eletrônicos. Nesse contexto de pandemia, está havendo uma restrição pras atividades presenciais. Imagina como é impulsionar projetos físicos”, disse a advogada.

Esses processos não são os únicos a sofrerem alteração por conta da pandemia. Segundo o TJPE, as audiências de custódia no Estado estão acontecendo de forma virtual, “através da manifestação prévia da defesa e do Ministério Público, por meio de e-mails previamente cadastrados no Judiciário, sobre o autuado em flagrante pela Secretaria de Defesa Social”. “Após as manifestações das partes por e-mail, os juízes decidem se convertem a prisão em flagrante em prisão preventiva ou se concedem a liberdade provisória por meio de alvará de soltura”, explicou por nota.

Questionada pela reportagem do JC se houve aumento ou diminuição na conversão em prisão preventiva de prisões em flagrantes, a assessoria de imprensa do órgão de Justiça respondeu que não dispõe desses dados, e que encaminharia a solicitação ao setor de pesquisa após o término do recesso junino, findado no dia 30.

Luta agora é por flexibilização do monitoramento eletrônico

Da Casa de Acolhimento e Misericórdia, em Afogados, onde estava até o último dia 25, Alexsandro conversou com o JC por telefone.

O espaço é um lugar de triagem para a Fazenda da Esperança, entidade católica de recuperação reconhecida pelo Vaticano. Sua estada também foi arranjada pelos amigos, que apostam na sua ressocialização. Até então, sete homens estavam abrigados na casa. As transferências para as duas unidades da fazenda em Pernambuco que ainda possuem vagas, em Garanhuns e São Joaquim do Monte, ambos no Agreste, aconteceram no dia 27. No entanto, Alexsandro não pôde ir.

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Fazenda da Esperança Santa Rosa, em Garanhuns, no Agreste de Pernambuco - REPRODUÇÃO/ FACEBOOK

A ideia era que ele fosse encaminhado para tratamento em Garanhuns, mas a tornozeleira o impede de sair do Recife. Os advogados vão pedir que que se retire o monitoramento eletrônico ou flexibilize o raio, porém não foi possível conseguir a liberação a tempo. No dia 26, ele precisou ir a um abrigo noturno da prefeitura, onde ficará até que uma decisão judicial autorize sua ida ao interior.

O TJPE informou que o juiz pode autorizar a retirada “nos casos em que o acusado não volte a delinquir no período determinado para o uso do equipamento de monitoramento eletrônico ou não represente mais um risco para a ordem pública”.

Alexsandro expressou o desejo de ir. “Eu quero mudar minha vida. Na verdade, eu já mudei. Eu era muito errado. Fazia roubo. Mas depois passei sete anos no Aníbal Bruno e saí sem dever nada. Parei de fazer coisa errada e comecei a trabalhar”, assumiu.

O sentimento de injustiça lhe acompanha. “Ainda está sendo difícil para mim. Eu estou pagando como se eu fosse uma pessoa muito perigosa. As pessoas que me conhecem sabem que eu não sou assim.”

De fato, muita gente se importa com o homem. Mesmo antes de precisar do apoio jurídico, ele já contava com os colegas. Em 2017, se emocionou ao ganhar seu primeiro bolo de aniversário. Recebia ajuda para pagar o aluguel de casa e cuidar dos cachorrinhos, que, aliás, são sua maior saudade. “Só de falar to com vontade de chorar. São meus filhos. Só queria estar junto deles de novo.”

Na análise da jornalista Maria Eduarda Andrade, uma das que se engajaram para ajudá-lo, foi esse amor que o aproximou das pessoas. "Ele era admirado pelo cuidado com os animais.”

CORTESIA
Alexsandro criou quatro cachorros como se fossem filho - CORTESIA
CORTESIA/ MARIA EDUARDA ANDRADE
Alexsandro criou quatro cachorros como se fossem filho - CORTESIA/ MARIA EDUARDA ANDRADE

Prisão preventiva é regra entre população negra e pobre

O caso de Alexsandro não é uma exceção no sistema prisional pernambucano, afirmou a coordenadora executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), Edna Jatobá.

Há 11.394 presos provisórios que foram privados de liberdade sem passar por julgamento no Estado, pelos números da Secretaria Executiva de Ressocialização de Pernambuco (Seres).

“Assim com ele, devem ter inúmeros casos de pessoas que foram presas em flagrantes e poderiam estar respondendo ao processo sob outra medida cautelar. Seja pelo fato de se representar à justiça mensalmente, seja recolhimento noturno, enfim - tem uma série de opções para evitar que a pessoa não acesse o sistema prisional”, alertou.

Na visão da cientista social, a prisão deveria ser uma medida excepcional. “O que a gente vê é que é o contrário: a liberdade é a exceção para pessoas que são presas em flagrante e passam a audiência de custódia”, declarou.

A face da Justiça se mostra ainda mais dura para quem é negro - caso de Alexsandro. “A maioria das pessoas detidas em flagrantes e que ficam retidas na audiência de custódia são de pele preta. A gente fez um levantamento junto ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e ao Asa Branca Tecnologia, e observou mais de 100 audiências de custódia, mostrando essa prevalência”, relatou.

“O que a gente vê é uma coalizão do sistema de justiça para manter as pessoas encarceradas. É como se fosse um indicador de qualidade: quanto mais prisões, mais estamos diminuindo a violência”, acrescentou Jatobá.

Para ela, no entanto, a medida não é eficaz para a redução da violência.

“Não conheço nenhum estudo que apontou para esse resultado. O que posso dizer é que, no início da década de 90, tinha menos de 100 mil pessoas em situação de privação de liberdade no Brasil. A gente chegou em 2020 com mais de 800 mil. Se fosse por essa lógica, a gente já teria reduzido a criminalidade em quase 100%. Uma das sociedades que mais prendem no mundo todo já deveria ter apresentado resultados, e não apresentou”, defendeu.

“Não apresentou porque a prisão em si só não resolve. A desigualdade, a pobreza e o racismos são elementos estruturais, que se não forem levados em conta para a elaboração de uma política pública transversal, de segurança, saúde, educação, moradia etc, a única política que vai ser apresentada para essa população é a prisional. E isso é um absurdo”, opinou. “A gente não está falando que não é para ter prisão; a gente acha que se prende muito mal.”

Por que evitar o encarceramento em massa?

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Alexsandro descreve os últimos meses no Aníbal Bruno como de muito sofrimento. “Eu tive que aturar muita coisa lá dentro para poder estar aqui. Eu pensei que nunca ia sair. Que ia viver ali para sempre. Teve momento que pensei em me suicidar. Nesses momentos. a pessoa ali tem que se agarrar muito com Deus."

Na sua vida, foi “como um obstáculo” que teve de enfrentar. “Para sair dali, do jeito que eu estou, tem que ter muito amor no coração e muita paciência. Se não tiver, não sai, não. Ou a pessoa piora, ou morre dentro dela”.

De acordo com Edna Jatobá, o Complexo Prisional do Curado é uma das penitenciárias em piores condições. “É tão ruim que foi objeto da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na proposição de medidas cautelares para a melhorias de aspectos mínimos de dignidade que o Estado deveria oferecer”, lembrou.

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O organismo exigiu, em 2018, que o Governo de Pernambuco adotasse imediatamente providências para proteger a vida, a saúde e a integridade física dos detentos e funcionários.

Em 2019, o Monitor da Violência, elaborado pelo G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontou que Pernambuco tem a maior superlotação carcerária no País, com uma quantidade de detentos 178% maior que a capacidade de presídios e penitenciárias.

“É uma situação de superlotação, de insalubridade. É um presídio que tem circulação de armas de fogo, onde há relatos de violência contra a população prisional. Existem muitos conflitos armados dentro do presídio”, revelou.

Ela argumentou que a sociedade deve fazer valer o que diz o estado democrático de direito.
“É encarar que a pessoa precisam ser responsabilizadas pelos crimes que cometeu. E ela é responsabilizada perdendo a liberdade, não perdendo a saúde, sendo vítima de contágio de tuberculose, infecções sexualmente transmissíveis, das comorbidades, da dificuldades de acesso a banho de sol, de comida com baixo teor nutricional, da insalubridade, superlotação”, avaliou.

 

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