SUBNTIFICAÇÃO

Denúncias caem, mas feminicídios crescem em Pernambuco durante pandemia do coronavírus

Desde março, quando iniciou o distanciamento social, os números de violência doméstica e estupros caíram, mas os feminicídios aumentaram no Estado

Amanda Rainheri
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Amanda Rainheri
Publicado em 07/06/2020 às 16:32 | Atualizado em 08/06/2020 às 19:02
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Queixas de violência doméstica e familiar contra a mulher em Pernambuco caíram 25,45% em abril - FOTO: REPRODUÇÃO

Primeiro, vieram os gritos. Do andar de baixo, Lúcia (o nome é fictício, para proteger a identidade) pensou que seria mais uma das brigas do casal que vive no apartamento de cima. Em seguida, vieram os sons abafados da agressão. A dona de casa decidiu que não poderia ficar de braços cruzados. Perguntou se deveria chamar a polícia. A resposta foi não. Mas os gritos continuaram e Lúcia resolveu acionar as autoridades mesmo assim. O caso aconteceu na manhã do último dia 22, no bairro de Tejipió, Zona Sul da capital. Na data do ocorrido, o Recife e outros quatro municípios da Região Metropolitana estavam em lockdown para evitar a disseminação do novo coronavírus. Por decreto, ninguém deveria sair de casa. Uma viatura da polícia chegou a ir até o endereço, mas o caso não foi levado para a delegacia.

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Em meio à pandemia da covid-19, o silêncio das vítimas preocupa quem atua na rede de proteção. Segundo dados da Secretaria de Defesa Social (SDS), desde março, quando o isolamento social começou, o número de denúncias de violência doméstica caiu, no comparativo com o mesmo período do ano passado. Em março de 2019, foram 3.829 casos, contra 3.040 em 2020, uma redução de 21% nas denúncias. Em abril do ano passado, 3.466 mulheres denunciaram agressões, contra 2.624 este ano. A redução é de 24%. Já no mês de maio, foram 3.573 em 2019, contra 2.692 em 2020 (dados parciais, coletados pela SDS até o dia 5 de junho) , uma diminuição de 24,6% no número de casos. 

Quando se analisam as denúncias de estupro, a queda é ainda mais acentuada. Em março de 2019, 198 pessoas haviam denunciado o crime, contra 123 em 2020, número 38% menor. Em abril, a redução foi de 18%, passando de 147 casos no ano passado para 121 este ano. Já maio registrou a maior queda. Em 2019, 218 mulheres procuraram as autoridades para denunciar casos de estupro, contra 130 em 2020 (dados parciais, coletados pela SDS até o dia 5 de junho), uma redução de 40,3%. Tanto os registros de violência doméstica quanto os de estupro registraram aumento em 2020 no comparativo anual em janeiro e fevereiro, meses que antecederam o isolamento social.

A tendência de queda, no entanto, não é observada quando se analisam os números de mortes de mulheres por feminicídio. Em março de 2019, 4 mulheres perderam a vida simplesmente pelo fato de serem mulheres. O número registrado foi o mesmo em 2020. Já em abril, o número quase dobrou. Subiu de 4 para 7 no comparativo entre 2019 e 2020. O aumento percentual é de 75%. A SDS não divulgou os números parciais do mês de maio, que deverão ser apresentados no próximo dia 15, junto ao balanço geral da violência no Estado.

Delegada e gestora do Departamento de Polícia da Mulher, Julieta Japiassu reconhece que pode haver subnotificação em decorrência do isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus. "A gente associa que podem existir mulheres dentro dos seus lares que não estão indo registrar o boletim, por medo de se expor ao vírus e também do agressor. Um estudo da ONU Mulheres fala sobre a tendência de a mulher estar sendo agredida em momentos de isolamento. Não é a diminuição da violência, pode estar havendo subnotificação", afirma.

Os boletins de ocorrência para casos de violência doméstica, no entanto, continuam sendo registrados apenas presencialmente nas delegacias. "A Polícia Civil disponibilizou o boletim pela internet para os crimes contra a honra, já que o ciclo da violência começa com xingamentos. Então, esse ciclo pode ser rompido neste momento. Não excluímos a possibilidade de incluir o registro de outros crimes no BO online também", explicou a gestora. Segundo ela, as delegacias da mulher seguem funcionando, com plantões emergenciais também em Paulista e Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife.

Denúncias de violência contra a mulher podem ser feitas através do 0800-281-8187 (Ouvidoria Estadual da Mulher), do 180 (federal) e do 190 (PM).

IMP

Em entrevista ao JC, a cofundadora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha (IMP) Regina Célia Barbosa falou sobre os desafios enfrentados por mulheres vítimas de violência doméstica em tempos de pandemia.

Jornal do Commercio - Em tempos de pandemia, a recomendação das autoridades é de que as pessoas fiquem em casa. Como isso impacta a vida da mulher vítima de violência?
Regina Célia Barbosa - Estamos vivendo duas pandemias simultaneamente: a do novo coronavírus e a mais persistente, a da violência contra a mulher. Quando a doença chegou, ela já encontrou uma realidade de políticas públicas fragilizadas no que diz respeito à emergência do atendimento a vítimas de violência. O coronavírus chega em março, exatamente no mês da mulher, no qual focamos muito em informações que motivam a denúncia. Com a pandemia, vem o distanciamento social e essa mulher vê o autor da violência questionar como ela vai fazer a denúncia, se não é permitido sair de casa e as delegacias estão fechadas. Embora não seja essa a realidade, alguns serviços tiveram atendimento reduzido ou alterado. Ou então, quando a mulher ligou para fazer a denúncia, ela ouviu que a recomendação era para ficar em casa. Os primeiros 30 dias dessa pandemia foram muito cruéis com essa mulher que estava sendo motivada a realizar a denúncia.

JC - Como o poder público pode atuar nesse sentido?
Regina Célia - Quem atua na rede de proteção, sabe os pontos das cidades com focos presentes de violência contra a mulher. Temos um equipamento que hoje é imprescindível neste momento: a Patrulha Maria da Penha. Já que essa mulher está acuada, sem poder sair de casa e fazer a denúncia, as rondas poderiam ser mais eficientes nesse sentido. Não resolveria 100% o problema, mas seriam grandes aliadas.

JC - O Instituto Maria da Penha tem percebido o aumento da violência nestes últimos meses?
Regina Célia - Vimos o aumento dos índices de violência psicológica, que se assemelha ao crime de tortura. Outra violência que cresceu foi a sexual chamada marital, em que o homem, dentro da relação conjugal, obriga a mulher a manter relação com ele contra a vontade dela. Estamos sendo muito procurados pelo Instagram (@institutomariadapenha) e também por e-mail ([email protected]). O atendimento jurídico tem sido muito elevado, mas existem aquelas mulheres que só querem desabafar e não formalizam denúncia, porque têm medo do agressor e estão sendo obrigadas a ficar em casa com ele neste período de pandemia. Estamos intervindo. As vítimas muitas vezes não esperam que o socorro chegue, mas ele está chegando.

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