Adeus

Ao Grandioso Manelito Dantas, com admiração

O Brasil acordou, nesta terça-feira (28), muito menor com a partida de seu Mané, aos 83 anos

Adriana Victor
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Adriana Victor
Publicado em 28/07/2020 às 13:43 | Atualizado em 28/07/2020 às 14:45
MANUEL DANTAS VILAR FILHO
O Brasil acordou, nesta terça-feira (28), triste com a partida de Manelito Dantas - FOTO: MANUEL DANTAS VILAR FILHO

Uma terra vasta, com pingos diários de trabalho e sonho, onde, apesar da amplidão do olhar, nunca houve espaço para desistência. "Nordestino, no Brasil, até hoje escapou fazendo da fraqueza, força”, repetia Manuel Dantas Vilar. Foi persistindo em suor e garra que ele ergueu tudo o que hoje se avista na Fazenda Carnaúba, Taperoá, Sertão dos Cariris Velhos da Paraíba do Norte. As cabras e ovelhas que desfilam as suas cores e pelagens pelos tabuleiros, o gado leiteiro que não mais se intimida com os desafios sertanejos, os queijos que abocanham prêmios Brasil afora, surpreendendo os que não creem no vigor da terra quase sem água. Também veio da força de Manelito Dantas a permanência dos filhos e dos netos no seu lugar, a perpetuação. O Brasil acordou, nesta terça-feira (28), muito menor com a partida de seu Mané, aos 83 anos. Infinitamente menor.

Anos a fio, para Taperoá correram pesquisadores e estudiosos: queriam ouvir e aprender com o engenheiro que misturava dogmas, sacudia e embaralhava verdades, filosofava exercendo a prática diária sobre o Sertão. “O Brasil, com o Nordeste seco bem incluído, tem a vocação e o destino de ser, também, a grande nação agropecuária, sobretudo pecuária, do mundo. Basta neutralizar mentes coloniais e ter a dignidade de estabelecer uma política decente de financiamentos rurais, calcada em parâmetros tecnicamente corretos e ajustados para cada região fisiográfica. Tomando o Brasil como referência para pensar o Brasil e a peculiar semiaridez do Nordeste para o Nordeste.”

Os estudantes também descobriram na Carnaúba sala de aula e verdade: com anotações diárias sobre índices pluviométricos do Sertão, registradas desde 1910, Manelito constatou que a média de chuva anual do Sertão é idêntica à de Paris. Mas com a diferença que, na cidade europeia, as águas se espalham por 183 dias; em Taperoá, são, em média, apenas 24 dias por ano com chuvas acima dos 10 milímetros.

Emissoras de TV, daqui e de longe, jornalistas do rádio e do papel – eram muitos a ouvir e a espalhar o que dizia Manelito: “O Sertão do Nordeste é a melhor zona seca do mundo, mas é a única para qual o adequado uso da terra não foi definido até hoje”, advertia, como crítico ferrenho às políticas públicas dos que sempre governam de costas para o semi-árido.

Também levei um microfone de TV para registrar nele as lições de Manelito. Mas, por dádiva, anos antes, havia sido conduzida pela mão por seu primo, o meu amigo Ariano, para conhecer o Mané contador de histórias. Já na primeira noite, estrelada e com um frio noturno de setembro, passamos horas na frente da casa a ouvir e ouvir. Ariano, um dos melhores contadores de histórias que já conheci, escutava mais do que falava. Cigarro entre os dedos, sentado na espreguiçadeira, Manelito alinhavava sabedoria com lucidez e graça. Fui por ele e pelos seus acolhida como se acolhe bem os amigos dos amigos. Agradeço e agradeço muito.

“Foi meu primo, Manoel Dantas Vilar Filho que, com sua grande visão, me abriu caminho para realizar meu velho sonho de criar cabras”, atestava Ariano. O que começou quase como utopia e devaneio nos anos 1970, materializa-se principalmente no Laticínio Grupiara, nome escolhido pelo escritor, que significa “veio de diamantes”, numa alusão à preciosidade que guarda a Carnaúba e seus queijos. “O queijo foi também uma forma de fazer o leite de cabra chegar às cidades”, ensinava Manelito.

Em quase 50 anos, os dois primos e os que vieram depois insistiram, resistiram. E seguem, hoje, com uma produção 2 mil litros de leite de cabras por dia. Os queijos, muitos deles medalhados dentro e fora do Brasil, têm perfume e sabor de ervas sertanejas.

Tomando fôlego e coragem para escrever sobre Manelito – a única homenagem que posso lhe prestar agora, além das minha orações – fui remexer nas lembranças. Encontrei textos de Ariano e referências à dupla de primos-irmãos. Eis um trecho do que, certa vez, escreveu Ariano:

“No dia 27 de julho de 1978, tiramos pela primeira vez, de 28 cabras paridas, pegadas ao acaso, 2 baldes de leite com 9 litros cada um, num total de 18 litros. Tentando transportá-los do curral para casa, peguei os baldes pelas alças e, sem jeito, ia derramando um pouco de leite pelo balanço natural do andar. Minha mulher, Zélia, e a mulher de Manuel, Clívia, gritaram assustadas, e Zélia me advertiu: “Cuidado, Ariano, que esse leite de cabra é ouro puro.” Acho que ela disse isso, primeiro, por saber o valor que aquilo significava para nós, mas também como uma crítica velada e afetuosa ao dinheiro e ao esforço que eu e Manoel empregamos nas cabras, eu entrando com as matrizes, ele com a terra a administração, e nós dois dividindo fraternalmente os prejuízos.”

Me dou conta que a data de julho, registrada no texto, também lembra o mês em que encantaram-se Ariano e agora Manelito. A Dantinhas, Inês, Daniel, Joaquim e Carolina o meu abraço mais forte e mais fraterno. A Marina, em nome de todos os netos de seu Mané, afago, afeto e admiração daqui de longe. Existe um custo para os sonhos. E há, perenemente, a nossa gratidão para quem neles resiste. Muito obrigada, Manelito!

 

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