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Governo federal deixa de enviar remédio para hanseníase e desabastecimento chega a Pernambuco

Estado foi o primeiro a sinalizar falta. Medicamento é fornecido gratuitamente pela OMS e distribuído aos estados pelo Ministério da Saúde

Maria Lígia Barros
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Maria Lígia Barros
Publicado em 21/08/2020 às 17:12 | Atualizado em 22/08/2020 às 14:47
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Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH) enviou ofício ao Governo Federal alertando sobre o problema em Pernambuco - FOTO: REPRODUÇÃO

Em meio ao desabastecimento nacional do medicamento para a hanseníase, pacientes sofrem com a interrupção do tratamento em Pernambuco. O remédio, chamado de poliquimioterapia (PQT) multibacilar e paucibacilar, é doado pela Organização Mundial de Saúde aos países, distribuído pelo Ministério da Saúde aos municípios e ofertado de maneira gratuita e exclusiva pelo Sistema Único de Saúde (SUS) mensalmente. Os produtos estão em falta em vários pontos do País, mas o Estado foi o primeiro a notificar a Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH). A entidade enviou ofício à coordenadoria-geral de Vigilância das Doenças em Eliminação, nessa segunda-feira (17), alertando sobre o problema nas cidades pernambucanas.

Em Olinda, Paulo*, que convive com a hanseníase há quase dois anos, está sem receber a medicação há cerca de um mês. O homem se trata em uma policlínica do município (o local foi preservado para não identificar o denunciante), e contou ter ouvido de uma enfermeira que a equipe foi orientada a colocar nos prontuários que os pacientes que buscassem a clínica em meio à falta de remédios “abandonaram o tratamento”. “E a gente fica como? Vou morrer à míngua?”, indignou-se.

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Ao JC, a Secretaria de Saúde de Olinda lembrou que a falta do produto “foge da responsabilidade municipal”. “O desabastecimento da medicação em pauta é em nível nacional, sobretudo, porque o citado remédio é dispensado pelo governo federal, que repassa para os Estados da Federação, que, por sua vez, enviam aos municípios”, falou, por nota. 

“Quanto à informação sobre uma funcionária orientar o paciente para assinar documentos no intuito de interromper o tratamento, esse tipo de orientação não faz parte do perfil e conduta desta Secretaria, até porque a gestão busca de forma intensa e comprometida pela erradicação da doença no município”, concluiu.

Paulo* é tratado na policlínica há mais de um ano. Ele completou os 12 meses previstos inicialmente de medicação, e, após uma reavaliação médica, foi receitado mais um ano de tratamento. “Quando você começa a tomar as primeiras doses, você fica imunizado. Mas caso passe mais de um mês sem tomar, você começa a sentir dores na junta. Essa doença é muito séria. Tem que fazer o tratamento”, disse.

Dermatologista do Instituto Prontopele e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco (UPE), Sérgio Paulo Mendes sintetizou que a descontinuação pode acarretar em dois grandes problemas: “No momento que interrompe, dá a oportunidade de o bacilo (causador da hanseníase) adquirir resistência”, citou. “A outra consequência muito grave é que a doença, além da pele, atinge também os nervos, tecido de baixa capacidade de regeneração. Essas complicações são as mais irreversíveis. A hanseníase é a causa mais frequente de cegueira do mundo”, detalhou.

Desabastecimento deverá chegar a todas as cidades

Frente à suspensão do tratamento, o paciente encara sentimentos de medo. “Você está carregando uma doença que, se não se tiver cuidado, você morre. Fora que não pode estar divulgando, porque, infelizmente, ainda tem muito preconceito”, afirmou Paulo*.

Ele pediu um encaminhamento para uma unidade de saúde do Recife, na esperança de conseguir o fármaco. No entanto, a situação é a mesma na capital pernambucana. Em nota, a Secretaria de Saúde (Sesau) do Recife afirmou que os estoques de Dapsona estão baixos e os de Rifampicina e Clofazimina estão zerados - três drogas usadas em pacientes adultos com hanseníase na forma multibacilar. "O órgão federal alega que a previsão de regularização é para o mês de setembro", revelou. A pasta acrescentou que não pode fornecer os comprimidos de Dapsona remanescentes de forma isolada, "pois a medicação só pode ser distribuída em um composto formado por outros três remédios, incluindo a Clofazimina, que está em falta". 

Outros municípios, como Cabo de Santo Agostinho e Petrolina, e Estados como São Paulo e Pará também foram atingidos pela crise no suprimento. A realidade não deverá demorar para a chegar a todas as cidades do País, de acordo com o presidente da SBH, Cláudio Salgado. A falta que é sentida na ponta é um gargalo com origem no fornecimento do governo federal.

“A posição do MS é que realmente não tem medicamento. As pessoas ainda estão tomando remédio por conta dos medicamentos que ainda restam nos municípios. À medida que o tempo for passando, não vai ter mais. Imagino que vai acontecer no Brasil inteiro”, postulou.

O Ministério da Saúde respondeu ao ofício da SBH (veja na íntegra), mas a entidade não considerou o pronunciamento satisfatório. “Deixamos claro que precisamos mais de informações. O que nós pedimos para o MS é que tornassem público o quantitativo de medicamento solicitado à OMS em 2019 e o quantitativo que distribuíram até agora. A gente não sabe exatamente o que está acontecendo e precisa saber para ver o que pode ser feito imediatamente”, defendeu Salgado.

 

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Segundo o hansenologista, a justificativa do governo federal para a suspensão do fornecimento foi a pandemia. “A OMS diz que está tudo regularizado, que mantiveram a quantidade da produção desses medicamentos. O Ministério da Saúde diz que teve dificuldade de transporte para chegar ao Brasil. Estamos tentando entender por que chegamos a esse ponto, considerando que estamos com 4 meses de endemia e no primeiro semestre tivemos problemas de abastecimento em alguns lugares”, pontuou. “Era sempre algo pontual e o MS dizia que estava regularizado. Me parece que já havia uma sinalização de que o MS estava ciente.”

O médico ainda criticou o fato de o País não ter desenvolvido ele mesmo o composto. “Não é possível que o Brasil ainda dependa da produção exterior de um medicamento que tenha 40 anos de uso e não tenha patente. Já deveríamos estar produzindo há muito tempo.”

Nessa quinta-feira (20), foi aberta na Câmara dos Deputados uma Frente Parlamentar de Erradicação da Hanseníase, com a presença da Sociedade Brasileira de Hansenologia e do Ministério da Saúde. O diretor Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis do MS, Gerson Fernando Mendes Pereira, falou que a pasta está em diálogo com grupos farmacêuticos privados para verificar a possibilidade de produzir o remédio.

O Brasil foi o segundo país do mundo com maior número de casos de hanseníase em 2016, com 25.218, atrás apenas da Índia (135.485), de acordo com pesquisa de 2017 da Organização Mundial de Saúde (OMS).

A reportagem do JC procurou o Ministério da Saúde e aguarda um posicionamento. O espaço está aberto.

 *O nome do entrevistado foi trocado para preservar sua identidade.

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