Em meio ao lixo, dentro de uma caçamba de cerca de 1,5 metro, uma recém-nascida foi abandonada, na Estrada do Pirapama, em Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana do Recife. Enrolada em uma sacola plástica, ainda com placenta, cordão umbilical e melada no sangue da mãe, a bebê prematura, de 2,6 quilos, dormia quando foi encontrada, por volta das 5h desse domingo (18), por dois policiais. Formados na corporação no dia 20 de janeiro, os soldados completam, nesta terça-feira (20), 9 meses de serviço - o tempo de uma gestação.
Nenhum dos dois entrou na Polícia imaginando que fariam este tipo de procedimento. "Nunca passou pela minha cabeça. Muito agradecida a Deus por ter salvado uma vida", comentou a soldado Marcilene Silva, de 28 anos. Ela e o colega Caio Vinicius de Melo, de 20, faziam ronda no bairro da Charneca quando receberam o chamado da ocorrência.
"A gente seguiu para o local, quando chegou lá, encontrou um senhor, Seu Inaldo, que foi quem ouviu a criança chorando e ligou 190", lembrou Caio. "Inicialmente foi um choque por ela estar naquela situação, depois fiquei grato por conseguir estar ali, por conseguir salvá-la", afirmou.
Depois de regatá-la, os agentes ligaram para o Centro Integrado de Operações de Defesa Social (Ciods) que os orientou a levá-la ao Hospital Municipal Mendes Sampaio, o mais próximo da localidade. Caio dirigiu a viatura enquanto Marcilene acompanhava a criança no banco de trás. "O motorista, com muita competência e agilidade, foi o mais rápido que pôde, porém com bastante cuidado, porque ali havia um inocente fragilizado", comentou Marcilene. Nessa hora, ela lembrou dos sobrinhos. "A gente pensou logo nos nossos", falou.
A paciente foi transferida para o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), na Ilha do Leite, área central do Recife, por volta das 10h30 do domingo. "A referida criança foi prontamente atendida, realizando exames iniciais para análise de suas condições clínicas, entre outras medidas médicas necessárias. No momento, encontra-se em observação e estável clinicamente", informou, por nota.
Expor ou abandonar recém-nascido é crime previsto pelo artigo 134 do Código Penal. No entanto, o caso só pode ser enquadrado depois de concluídas as investigações, conduzidas pela Delegacia do Cabo. "Aparentemente, a criança foi abandonada, mas a configuração do crime de abandono só depois da investigações. Porque existem outras hipóteses que precisam ser descartadas - alguém pode ter sequestrado a criança, a mãe pode ter abandonado em um surto etc", elucidou Paulo André Teixeira, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE).
Apesar de chocante, o abandono de recém-nascidos não é algo raro no Brasil. Trata-se de uma herança colonial, de acordo com Humberto Miranda, diretor do Instituto Menino Miguel da Universidade Federal Rural de Pernambuco e historiador dos Direitos da Criança e do Adolescente. "Era comum ter essa prática no período colonial, inclusive aqui no Recife". Segundo o pesquisador, há registros também em Salvador, na Bahia, e no Rio de Janeiro.
Na avaliação do especialista, o número de ocorrências desse tipo está voltando a crescer. "Existiu uma diminuição de abandono com essa característica, mas, de um tempo para cá, vem sendo retomado, não só em Pernambuco, como em outros estados", afirmou. "Isso se deve muito ao aumento da pobreza e extrema pobreza e com a questão da violência sexual e abuso praticados conta mulheres, mais notadamente contra adolescentes."
O professor destacou ainda que o caso acontece no ano em que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que reconhece a população infantil como sujeito cidadão, completa 30 anos de efetivação. "Você tem coisas muito serias acontecendo, muito emblemáticos. Teve o caso Miguel, da menina (de dez anos que engravidou no) Espírito Santo, e agora esse", contextualizou.
De acordo com ele, o estatuto possibilitou a criação de uma política de adoção bem sistematizada. "Você tem uma serie de medidas que buscam prevenir essa pratica", comentou. Ao contrário do abandono de incapaz, a entrega voluntária de criança para adoção na Justiça é um direito da mulher. O TJPE tem um programa para acompanhar gestantes e mães que desejam entregar o bebê ou precisam de ajuda para tomar esta decisão. O serviço existe há 9 anos.
Para ter acesso ao programa Acolher, a mulher deverá procurar a Vara da Infância no Fórum da sua cidade. "Ela será recebida por uma equipe formada por psicólogos, assistentes sociais e pedagogos, que poderão, junto com ela, amadurecer a decisão de cuidar ou não desta criança", explicou Paulo André Teixeira, coordenador da iniciativa, em entrevista à TV Jornal.
O desejo de não ficar com a criança pode ser manifestado desde a gestação. "Porém, quando a criança nasce, segundo a legislação, (a mãe) vai precisar comparecer a audiência no Fórum, com juiz, um representante do Ministério Público e um advogado, para confirmar esse desejo. Mas é importante que se a mulher tiver dúvidas desde a gestação se ela tem condições ou não de cuidar dessa criança, que ela procure atendimento para receber esses cuidados pelo período mais longo possível", enfatizou. Depois de nascidos, podem ser entregues bebês de até 45 dias.
Na hora de escolher uma família para o bebê, a primeira tentativa é de manutenção na família natural ou extensa. "Com ela, com o pai da criança, com os avós, com o tio. Apenas em última situação a criança vai ser encaminhada para adoção", informou. "A mulher também pode pedir o sigilo, pedir que os parentes não sejam acionados, e aí a criança vai ser encaminhada para adoção."
No caso da recém-nascida encontrada no lixo, ela deverá ser encaminhada a uma Casa de Acolhimento. "Enquanto isso, as equipes da acolhida e do Poder Judiciário vão procurar pela família para saber se alguém tem interesse e condições de cuidar dela. Não sendo possível, ela será encaminhada pra uma família do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento", explicou.