Você sabia que existem caciques e pajés mulheres liderando povos indígenas em Pernambuco?
Estado conta com duas pajés e várias caciques liderando seus povos. Agenda para os indígenas não está fácil diante da covid-19, disputas de terras e um governo federal pouco interessado nos povos tradicionais
Desde criança, Anayliô Ynaê despertou a atenção do povo Tuxá. A menina adoecia e era levada para os chamados 'homens de saias brancas' - os médicos -, mas de nada adiantava. Logo se percebeu que a garota tinha um dom espiritual, uma patente para ser cacique ou pajé. Na tradição indígena, essas posições sempre foram ocupadas, em sua grande maioria, por homens. Agora, por vontade da natureza e pelo posicionamento de liderança das mulheres, aumentou a presença feminina como pajés e caciques em todo o Brasil. E não foi diferente em Pernambuco, que tem duas pajés e mais de cinco caciques em diversas etnias distribuídas pelos municípios do interior do Estado.
"A criança que tem patente para ser cacique ou pajé começa a ser preparada espiritualmente desde o ventre da mãe, durante a gestação. Antes de receber a patente, o escolhido pela natrureza passa por uma preparação que varia de etnia para etnia. No caso do nosso povo Tuxá, eu fiquei três meses isolada em um dos nossos Dedeco (espaço sagrado) para me conectar com os antigos que já se foram e para me afastar da vaidade humana antes de me tornar pajé", explica Anayliô Ynaê, que na língua indígena significa força do vento. Seu mome 'branco' de 'batismo é Aline Pajeú, porque não é permitido registrar nome indígena em cartório.
Com apenas 30 anos, Aline é pajé do povo Tuxá há 6 anos. A aldeia fica a 25 Km da cidade de Inajá, no Sertão pernambucano. Até 1987, a comunidade vivia na Ilha da Viúva, na divisa de Itacuruba (PE) e Rodelas (BA), mas depois da construção da Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga, a comunidade foi expulsa do local e o povo foi dividido em três grupos. Um vive em Inajá e os outros dois em Rodelas e Ibotirama, na Bahia. Em Inajá o grupo tem 60 pessoas.
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A divisão dos grupos e questões internas da aldeia fizeram com que os Tuxás de Inajá passassem 12 anos sem pajé. "Se continuasse desse jeito nossa comnunidade ia padecer, porque o pajé é o guardião da ciência e da sabedoria. É ele quem tem os conhecimentos da espiritualidade, das ervas medicinais e das garrafadas e precisa repassar esses conhecimentos para o novo escolhido. Como estávamos sem pajé na aldeia, eu recebi a patente do pajé Francisco, conhecido por seu Tim, lá em Rodelas, na Bahia", conta Aline.
A pajé Tuxá diz que as mulheres indígenas sofrem preconceito ao ocupar essas posições, assim como a sociedade condena várias outras colocações femininas. "Vivemos em um país machista, onde a mulher é excluída de várias situações. Comigo eu não sofri preconceito do meu povo, porque todos sabem que um pajé não escolhe, ele é escolhido pela natureza. Dessa formas, ou se aceita a escolha ou tomba. Mas já sofri discriminação participando de encontros, em que me diziam que eu sou nova demais e mulher para ser pajé. As pessoas precisam saber que é uma responsabilidade muito grande ser pajé e que 30% da vida é sua e 70% da vida sagrada", destaca.
CACIQUES
Liderança reconhecida, Dorinha Pankará é cacique do seu povo há 18 anos, desde 2003. Os Pankarás estão distribuídos em três territórios, mas Dorinha lidera o povo da Serra do Arapuá, no município sertanejo de Carnaubeira da Penha. São 3,5 mil indígenas organizados em 52 aldeias. Para o povo Pankará, o cacique também é escolhido pela natureza.
"Não temos eleição para cacique, a natureza escolhe quem tem o dom. E ser cacique não é ter poder, é cumprir uma missão de defender os direitos de seu povo. É uma liderança política, que pode ser mulher ou homem, e tem o papel de buscar políticas públicas, de defender os direitos indígenas, de aconselhar e de tomar decisões junto a outras lideranças. No caso do povo Pankará não é o cacique quem decide, temos três pajés que têm contato com a natureza e eu não tomo nenhuma decisão sem autorização deles", afirma.
Dorinha lembra que não sofreu preconceito quando virou cacique dos Pankarás, mas ouviu comentários de pessoas de fora. "Ficavam perguntando: 'os Pankarás não têm homem não é?", desdenhando a escolha de uma mulher se sagrar como cacique", recorda.
O povo Truká, que mantém seu território ancestral na Ilha da Assunção, no meio do Rio São Francisco, no município de Cabrobó, tem três caciques homens e uma mulher para manter a organização social. No total são 6,5 mil pessoas ocupando 26 aldeias. Há 5 anos, Ana Cleide dos Anjos Gomes, foi a primeira mulher cacique escolhida pela natureza e aceita pelo grupo.
"Não quer dizer que a mulher seja mais mole, mas somos mais sensíveis e temos um olhar menos duro nas decisões. Escutar os dois lados é impostante e nos dias atuais se ouve muito, porque a ideia de andar de mãos dadas e de compartilhar está mais viva. O povo indígena vive tempos muito difíceis por causa da covid-19 e do governo (federal) que nos excluiu do seu projeto", observa.
Ana Cleide explica que para os povos indígenas, a terra não significa apenas subsistência, um lugar para plantar e colher. "Para nós a terra é a nossa mãe. Dela tiramos tudo o que para alimentar o corpo, para a mente e para a espiritualidade", ensina.
Fonte: Remdipe - Rede de Monitoramento de Dados Indígenas em Pernambuco
POVOS INDÍGENAS EM PERNAMBUCO
No ano passado, com a chegada da pandemia da covid-19 ao Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) antecipou um levantamento de dados sobre os povos indígenas e quilombolas no País. Os números mostraram que Pernambuco é o Estado brasileiro com o sexto maior número de indígenas, depois de Amazonas, Roraima, Pará, Mato Grosso e Maranhão. Os dez municípios com maior população são Pesqueira, Tacaratu, Carnaubeira da Penha, Águas Belas, Recife, Cabrobó, Jatobá, Petrolândia, Salgueiro e Ibimirim.
Dezessete etnias têm suas terras no Estado: Atikum, Pankará (duas localizações), Pipipã, Kambiwá, Kapinawá, Kukuru (duas localizações), Truká, Tuxi, Tuxá (duas localizações), Pankararu (duas localizações), Fulni-ô e Pankaiwká. (veja localizações no mapa).
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